No interior de Riozinho, Aldeia Mbyá-Guarani luta para manter tradições

Reportagem| Fotos| Vídeos: João Carlos Ávila
 

Quem está acostumado com o trânsito intenso, por vezes violento, da RS-239, no percurso entre Estância Velha e Taquara talvez não saiba, mas a margem da rodovia, em trecho onde o asfalto ficou para trás, abriga duas tekoa (aldeia) de índios Mbyas Kuery [Mbyas-Guaranis]. Uma delas é a Pindoty [pronuncia-se pindotê, a Granja das Palmeiras], distante sete quilômetros do Centro do município de Riozinho. Lá, a velocidade é outra e o objetivo um só: manter viva a reguá [cultura] deste povo, que desde a colonização portuguesa foi perdendo espaço para os juruá kuery [povos não indígenas].

Cerca de 40 guaranis, de sete famílias, com idades entre três e 83 anos, ocupam uma área de 24 hectares. Ao lado, a Tekoa Ita Poty [Itapotã, ou Pedra Florida], com mais cinco famílias. Cerca de 20 quilômetros dali, numa estrada onde só transitam veículos tracionados, a Nhu Porã [Campo Bonito].

 

Educação e cultura

Na Pindoty, a comunicação entre os indivíduos é por meio da língua-mãe. Aliás, as crianças só aprendem o português quando ingressam no ensino fundamental, cujas aulas acontecem numa nhembo'e (escola e as atividades nela realizada) de alvenaria construída na própria tekoa. Poucos metros abaixo, num terreno em declive, outras duas endas (casas), de alvenaria, construídas pela Funai. Cada uma com dois quartos, banheiro e uma cozinha ampla. Mas não é isso que eles querem. Tanto é que já construíram uma opy [pronuncia-se opã, ou casa de convivência, casa para atividades espirituais]. A construção é quase tradicional. Foi feita de madeira extraída do mato e barro. Ali os guaranis se reúnem e contam histórias e transmitem seus nhembo'e reko (ensinamentos) para o pequenos. Só não é conforme a tradição o telhado, uma vez que falta matéria-prima na região e os guaranis tiveram que usar telha de fibrocimento. Outra, um pouco menor, está em construção. O guarani Vherá se encarrega de JeO apo (fazer a própria casa). Com telhas de barro, mais uma vez pela escassez de matéria-prima, a enda vai abrigar uma família que aguarda a chegada do segundo filho neste mês de julho.

Foto por: João Ávila/João Ávila / GES-Especial
Descrição da foto: Na Pindoty, vivem cerca de 40 guaranis entre três e 83 anos

À frente da Tekoa Pindoty está o cacique Karaí. Perguntado sobre um atá (fogo) de chão no meio da aldeia, ele logo fala: "O fogo é tudo". Karaí é professor bilingue, português-guarani. É ele quem fala pelo grupo. Casado com Jaxuká, tem sete filhos. Fala das dificuldades em manter a tradição. A começar pela produção. Afinal, nas terras de 24 hectares, apenas cinco são cultiváveis ou habitáveis. Além disso, o clima é um problema, pois a área é alta e úmida e faz muito frio. Recentemente, um pomar foi perdido após as plantas morrerem uma a uma. Mesmo assim, plantam o avaxi [milho] guarani. Conforme o cacique, existiam cerca de dez variedades, mas algumas já estão extintas. Cultivam ainda hortaliças e criam galinhas.

As dificuldades

Na mata falta matéria-prima para o artesanato. É preciso andar quilômetros para buscar a madeira macia em outras terras. Com elas, faz-se o artesanato, basicamente pequenos animais, como onça pintada, coelho, cobras, esculpida uma a uma. A cor é dada através de queima com ferro quente. Também são produzidos cestos, de vários tamanhos, e outras peças, algumas com material encontrado no comércio. A área não tem rio nem riacho e a y [ou ã, água] chega por gravidade, de uma fonte distante 1,5 mil metros.

Estas dificuldades de cultivo e de acesso a materiais fazem com que os guaranis da Tekoa Pindoty necessitem de auxílio. Por isso, doações sempre são bem vindas, especialmente de alimentos. Assim, o pouco que entra com a venda do artesanato supre outras necessidades, como a compra de milho e ração para a criação de galinhas. Karaí diz, ainda, que os guaranis pouco vão para a cidade, o que colabora para manter a tradição. Não querem vender seus artesanatos na rua. Mas aceitam convites para eventos como feiras do livro.

  • Meninas na aldeia, uma delas, albina
    Foto: João Ávila / GES-Especial
  • Casas de barro
    Foto: João Ávila/GES-Especial
  • Comunidade indígena no interior do Vale do Paranhana
    Foto: João Ávila/GES-Especial
  • Petinguá: uma das tradições indígenas
    Foto: João Ávila/GES-Especial
  • Velhice: pais do cacique, os mais velhos da aldeia
    Foto: João Ávila/GES-Especial
  • Na aldeia: Jaxuká, esposa do cacique, um jovem indígena e o artesanato, fonte de renda
    Foto: João Ávila/GES-Especial

 

Indígenas carregam o nome espiritual

Todo o indígena brasileiro tem certidão de nascimento, carteira de identidade, faz título de eleitor etc, conforme o Código Civil. Mas optamos, nesta reportagem, por usar seus nomes guaranis, cuja escolha é feita pelo Pajé [chefe religioso], em uma espécie de batismo quando o indígena tem perto de dois anos de vida. A escolha do nome ocorre num ritual, realizado uma vez por ano, normalmente em janeiro ou fevereiro, em aldeias que têm o chefe religioso. As que não têm, como a Pindoty, ou recebem um para o ritual ou deslocam a família para outra aldeia. Este ritual pode levar até três dias e, após profunda meditação do pajé, os nomes das crianças são a eles revelados. Podem vir do Kuaray [kuaraã, Clã do Sol], do Werá [Clã do Relâmpago], do Poty [potã, Clã das Flores], do Pará [Clã do Mar], do Yva [Clã do Universo].

Foto por: João Ávila/GES-Especial
Descrição da foto: Velhice: pais do cacique, os mais velhos da aldeia

Há, ainda, os nomes que significam Popyguá [sabedoria]. Na Tekoa Pindoty, vários levam o nome Vherá. É comum, na mesma família, mais de um indivíduo ter o mesmo nome. O próprio cacique Karaí tem dois filhos que se chamam Vherá, mesmo nome de um de seus cunhados e o neto, filho de seu primogênito. Paraí e Kuaray são outros nomes da aldeia. Jaxuká, nome da esposa do cacique, também é o nome de uma das sobrinhas.

Vida simples na Tekoa Pindoty

A vida na Tekoa Pindoty é simples. Enquanto jovens e adultos organizam um círculo com cadeiras para receber os visitantes, um dos filhos do cacique vai na Opy e prepara o Ka’ay [chimarrão]. Na roda, Jaxuká acende seu Petynguá [cachimbo]. Cada um tem o seu e Karaí diz que não se trata de vício, mas costume e tradição. Já as crianças brincam na volta, algumas com pés descalços, outras com chinelos de dedo. Um brinquedo novo trazido por algum visitante é recebido como uma joia. O cacique Karaí comenta: Quando ele era criança, brincava de fazer arco e flecha. Mas não tem como não misturar a tradição com a modernidade. Tanto é que dois integrantes da aldeia já trabalham na cidade. Aliás, cidade onde eles também buscam produtos, nos supermercados, e serviços, como o atendimento médico. Além da visita quinzenal das equipes da Sesai (Secretaria Especial da Saúde do Índio), do Ministério da Saúde, alguns atendimentos são buscados em Riozinho, apesar da dificuldade de transporte. Não tem ônibus que chega perto da aldeia e quando há necessidade de fazer compras, o frete acaba custando caro.

Glossário

Avaxi - milho
Endas - casas
Ita Poty / Itapotã- Pedra Florida
JeO apo - fazer a própria casa
Juruá kuery - povos não indígenas 
Ka’ay - chimarrão
Kuaray (kuaraã) - Clã do Sol
Mbyas Kuery - Mbyas-Guaranis
Nhembo’e - escola e as atividades nela realizada
Nhembo’e reko - ensinamentos
Nhu Porã - Campo Bonito
Opy (opã) - casa de convivência, casa para atividades espirituais
Pajé - chefe religioso
Petynguá - cachimbo
Pindoty - Granja das Palmeiras
Poty (potã) - Clã das Flores
Popyguá - sabedoria
Reguá - cultura
y (ã) - água
Werá  - Clã do Relâmpago

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