Como a disputa entre Estados Unidos e China reflete na economia gaúcha

 

Desde março de 2018, o presidente norte-americano Donald Trump e o presidente chinês Xi Jinping se revezam no anúncio de sobretaxas a importações destes países

 

Reportagem: Nicolle Frapiccini

Duas potências mundiais em lados opostos. Em uma ponta, a águia de cabeça branca, dos Estados Unidos; na outra, o dragão da República Popular da China. Como em um cabo de guerra, esses dois "símbolos nacionais" têm medido forças há pelo menos um ano e meio. Com o pano de fundo do déficit da balança comercial, o embate já ultrapassou o campo político e vem influenciando na economia. Desde março de 2018, o presidente norte-americano Donald Trump e o presidente chinês Xi Jinping se revezam no anúncio de sobretaxas a importações destes países. Medidas que por um lado abrem oportunidades, mas também desencadeiam uma grande instabilidade nos cinco continentes.

E no Brasil, não é diferente. Portas para produtos verde-amarelos, que não estavam tão abertas em alguns segmentos para esses dois players, já são vistas com outros olhos. Em relação à China, os produtos primários e as commodities, especialmente a soja, são considerados potenciais de comércio. Já para os Estados Unidos, os produtos manufaturados, principalmente os relacionados à siderurgia e ao calçadista, podem ter ganhos.

Foto por: Ed Jones, Paul J. RICHARDS / AFP
Descrição da foto: Donald Trump e Xi Jinping travam batalha comercial

O professor doutor em Economia do Programa de Pós-Graduação em Economia da Unisinos Magnus dos Reis explica que de uma maneira geral uma guerra comercial não traz perspectivas boas. "Entretanto, alguns setores brasileiros podem se beneficiar pelo fato de que ficarão mais competitivos se comparados com os chineses e norte-americanos que foram sobretaxados. Poderíamos ter mais setores aproveitando essas oportunidades se não tivéssemos um custo Brasil e uma alta carga tributária que prejudica a competitividade dos nossos produtos no exterior", avalia Reis.

Falta preparo na indústria

O vice-presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) e coordenador do Conselho de Comércio Exterior da entidade, Cezar Müller, destaca que muitas cadeias produtivas gaúchas estão pouco preparadas para suprir a demanda de oportunidades que se abrem nesse primeiro momento.

"Precisamos tornar o País mais competitivo no exterior, seguindo na linha de reformas necessárias para que a indústria se torne mais competitiva."

Esse é o grande desafio. "Se tivéssemos feito as reformas, com certeza, estaríamos mais preparados para ocupar determinados espaços neste embate", frisa, ao defender políticas de longo prazo.

 

Socorro na soja brasileira

Já o presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e diretor de Relações Internacionais da Confederação Nacional da Agricultura, Gedeão Pereira, revela que a soja gaúcha e verde-amarela está sendo beneficiada.

"Nessa guerra comercial, a China sobretaxou a soja norte-americana e se socorreu, principalmente, com o Brasil. Além disso, acredito que não perdemos espaço em outros mercados, porque a soja brasileira é melhor e tem mais proteína em comparação à dos Estados Unidos."

Segundo Pereira, o acirramento comercial entre os dois players impulsionou os preços da soja no País.

Calçado entrou na lista 4 dos Estados Unidos

Na última lista divulgada pelo governo dos Estados Unidos com os produtos chineses que serão sobretaxados, a expectativa do setor calçadista verde-amarelo se confirmou. Ao todo, 125 códigos de produtos referentes a calçados foram incluídos. A coordenadora de Inteligência de Mercado da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), Priscila Linck, conta que os calçados e suas partes foram divididos entre os dois períodos de vigência da lista 4.

Foto por: Hugo Delgado
Descrição da foto: Calçado entrou na lista 4 dos Estados Unidos

"Eles dividiram os 125 códigos quase que na metade, 71 deles, que correspondem a 57%, receberão a sobretaxa de 10% em setembro. Já os 54 restantes, que correspondem a 43%, em dezembro deste ano. O presidente Donald Trump decidiu postergar parte deles para não impactar nas compras de final de ano." Apesar da vigência da sobretaxa ao calçado ainda não ter começado, o setor calçadista nacional já sente reflexos positivos.

"Nos sete primeiros meses deste ano, os Estados Unidos, que é o principal mercado do calçado verde-amarelo, aumentaram as compras em 33,3% o número de pares e 40% em valor."

Esse crescimento foi sentido porque os importadores norte-americanos se movimentaram buscando novos fornecedores em razão dessa tarifa extra para os produtos chineses. E os Vales do Sinos, Caí, Paranhana, conhecidos pela tradição e por abrigar o principal polo do setor calçadista no Estado também já vêm sentindo esse aumento nos pedidos por parte dos norte-americanos. Isso porque até julho, o Rio Grande do Sul já apresentou um incremento de 63,9% em pares e de 48,4% em valor para os Estados Unidos no comparativo com os sete primeiros meses de 2018.

 

Expectativa de crescimento

A coordenadora de Inteligência de Mercado da Abicalçados destaca ainda que a sobretaxa ao calçado chinês abre oportunidades não só para os fabricantes brasileiros como também para o de outros países. Entretanto, a entidade enxerga essa tensão como uma grande oportunidade para o produto verde-amarelo. "Esperamos que a partir da sobretaxa possamos crescer além da média que já estamos crescendo nos Estados Unidos pelo fato de que ficamos mais competitivos no comparativo com os chineses que são nossos concorrentes diretos", fala Priscila.

Outro ponto que pode favorecer o incremento de pedidos de calçados made in Brazil por parte dos norte-americanos é lembrado por Priscila. "Cerca de 60% das exportações chinesas de calçados para os Estados Unidos, em dólares, são de calçados de couro e sintéticos. Segmento em que o Brasil está melhor posicionado. Afinal, 94% do calçado que enviamos para os EUA é deste segmento", revela, ao ressaltar que a tarifa adicional não tem prazo de validade. "Não acredito que devam retroceder enquanto estiver nessa fase de negociação", fala a coordenadora.

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Industriais atentos aos movimentos

Há alguns anos, o Brasil acumula déficits em sua balança comercial de produtos manufaturados. Isso significa que importamos mais produtos prontos - com valor agregado - do que exportamos. Nesse contexto, Müller não tem dúvidas de que o tão falado custo Brasil é um grande empecilho. "Temos que trabalhar para que possamos ter recuperada a capacidade de competir internacionalmente. Quando tivermos isso, muda o perfil da nossa indústria nesse contexto de guerra comercial", fala o vice-presidente da Fiergs, ao alertar que o que os chineses não vendem para os norte-americanos, por exemplo, eles podem vender em outros países com os quais hoje os gaúchos e brasileiros mantêm relacionamento.

"Isso pode ser uma ameaça para nós e pode estimular uma guerra de preço. Temos que entender que a retomada da competitividade brasileira é mais do que necessária." Com a certeza de que o industrial gaúcho está atento aos movimentos do mercado internacional, o executivo salienta que é difícil identificar se o Estado está aproveitando as oportunidades. "Não sabemos o que de fato é uma consequência dessa guerra comercial ou não, mas, sem dúvidas, essa situação deixa o exportador articulado esperando que as oportunidades surjam."

 

 

Rounds da luta

2018

22 de março
PREPARATÓRIO - Estados Unidos publicam relatório sobre os atos, políticas e práticas da China relacionadas à transferência de tecnologia, propriedade intelectual e inovação.

6 de julho
INÍCIO OFICIAL - A data marca o início efetivo da guerra comercial entre Estados Unidos e China, já que começa a vigência de parte das tarifas impostas por Trump, que atingiriam US$ 34 bilhões, com adicional de 25%. A China ativou tarifas retaliatórias com o mesmo valor.

23 de agosto
MAIS SANÇÕES - Entra em vigor a segunda lista prometida pelo governo norte-americano. Mais US$ 16 bilhões em produtos são taxados com 25%. Mais uma vez, o governo chinês contra-ataca com tarifas de mesma proporção e valor.

24 de setembro
TERCEIRO ROUND - Começa a valer a terceira lista dos Estados Unidos com mais tarifas sobre US$ 200 bilhões em produtos chineses. O adicional de 10% valeria até 1º de janeiro de 2019, quando a sobretaxa passaria a 25%. A resposta da China é uma retaliação com tarifas no valor de US$ 60 bilhões e adicional tarifário de 5% a 10%.

1º de dezembro
TRÉGUA PARCIAL - Os líderes Donald Trump e Xi Jinping anunciam, após o término das reuniões do G20 na Argentina, uma trégua temporária na guerra comercial. A trégua duraria 90 dias e começaria a valer a partir de 1º de janeiro de 2019.

 

2019

10 de maio
AUMENTO NA TARIFA - A trégua acordada em dezembro acabou terminando apenas em maio, quando o governo dos Estados Unidos cumpriu o prometido em elevar a sobretaxa da terceira lista de 10% para 25%, o que não ocorreu em janeiro devido às negociações entre os dois países.

1º de junho
REAÇÃO CHINESA - Assim como os Estados Unidos, a China decidiu elevar tarifas, aumentando a taxa adicional sobre os US$ 60 bilhões – anunciados em setembro de 2018 – para 25%.

29 de junho
NOVA TRÉGUA - Depois de reuniões do G20 no Japão, os presidentes de Estados Unidos e China decidiram retomar as negociações e declararam trégua.

1º de agosto
PAUSA NA TRÉGUA - Trump decidiu suspender a trégua e anunciou a quarta lista com sanções para US$ 300 bilhões em produtos com adicional tarifário de 10% a partir de 1º de setembro. Entretanto, no último dia 13 de agosto, Trump decidiu adiar a sobretaxa para parte da lista, dividindo-a. Com isso, a primeira parte entra em vigor em 1º de setembro e a segunda em 15 de dezembro.

23 de agosto
TARIFAS EXTRAS - China anunciou que vai implementar tarifas extras sobre US$ 75 bilhões com adicionais de 5% ou 10% para produtos com origem dos Estados Unidos. Assim como na medida norte-americana, as tarifas para alguns produtos entrarão em vigor em 1º de setembro e para outros em 15 de dezembro.