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A vida pelo olhar de um psicólogo cego

Raí Correia Cabeleira, 30 anos, atende em uma clínica de Canoas. Sua trajetória inspira pacientes e colegas de trabalho. "Tornei possível o que diziam ser impossível de acontecer", afirma

Publicado em: 04.08.2023 às 13:14 Última atualização: 04.08.2023 às 13:25

O psicólogo Raí Correia Cabeleira observa os pacientes de modo diferente. Não apenas isso. Desde que acorda até chegar a clínica onde atende, tateando a bengala sob o piso, percebe o mundo com um olhar diferenciado da maioria. Isso porque ele é deficiente visual.

O psicólogo Raí Correia Cabeleira atende a pacientes no Espaço Criar, em Canoas
O psicólogo Raí Correia Cabeleira atende a pacientes no Espaço Criar, em Canoas Foto: PAULO PIRES/GES
Aos 30 anos, Raí celebra a vida mais do que nunca, servindo de inspiração para pacientes e colegas do Espaço Criar, centro de atendimento psicológico que funciona no bairro Marechal Rondon, em Canoas.

"Há pacientes que me perguntam como eu consegui me tornar psicólogo e outros sobre como lido com as coisas no dia a dia sendo cego", conta. "Às vezes, estou disposto a explicar, mas outras vezes prefiro apenas continuar com a sessão".

Não foi fácil. Raí não nasceu cego. Vítima de glaucoma, perdeu a visão completamente aos 12 anos. Seguiu-se um longo período de aceitação e dificuldade no qual precisou aprender a viver com uma deficiência.

"Acredito que o maior desafio tenha sido me aceitar como pessoa com deficiência", salienta. "Era muito novo e não havia na época o conceito de inclusão que existe hoje. Ninguém sabia lidar muito bem com o que aconteceu comigo".

Então um jovem interiorano vivendo em São Borja, foi somente quando se mudou com a família para a Região Metropolitana de Porto Alegre que Raí começou a ter contato com oportunidades que o fizeram crescer e aprender.

"Terminei o Ensino Médio aos 20 anos com enorme dificuldade", recorda. "Foi um período de descobertas no qual garanti o apreço pelo ensino. Tive professores que me ajudaram muito e me acolheram, direcionando o que valia ser aprendido".

Quando percebeu ser possível a conquista do diploma no colégio, Raí imaginou que poderia ir mais longe. Afinal de contas, na época já havia aprendido braile e informática. A decisão pela psicologia, ele afirma, acabou sendo óbvia, mas nem todo mundo entendeu.

"A minha vida toda recebi atendimento de terapeutas e pedagogos. Eles me ajudaram muito", destaca. "Pensei que poderia retribuir estudando psicologia e um dia, quem sabe, conseguir ajudar outras pessoas. Só que me falavam que não conseguiria. Pois tornei possível o que diziam ser impossível de acontecer".

 

Falta de aceitação

O período na universidade começou em 2014 e representou um novo desafio para Raí. Ele lembra que acessibilidade era quase zero na época, além da completa falta de adaptabilidade do ensino para alguém com deficiência visual.

"Eu tinha que brigar com os professores por ajuda", recorda. "Chegava o dia da prova e largavam na mesa uma folha de papel impressa no Word. Ficava claro para mim que não me queriam ali. Foi um período muito difícil".

Ao tomar conhecimento dos métodos de ensino diferenciados que vinham sendo aplicados pela PUC, em Porto Alegre, resolveu fazer a mudança e assim deu início a uma nova fase, desta vez com o apoio e estrutura de uma universidade.

"Desde o primeiro dia na faculdade, sempre contei com o apoio e o acolhimento de colegas. Fiz amigos", fala, orgulhoso. "E isso me ajudou em vários aspectos, inclusive na mudança de faculdade, que acabou garantindo o meu sonho de me formar em 2019".

Amor e carinho em casa

A entrada no mercado de trabalho também representou um obstáculo a ser superado. Há um ano trabalhando no Espaço Criar, atende a pacientes com e sem deficiência, garantindo a mesma atenção a ambos.

"Às vezes as pessoas só querem ser ouvidas", defende. "É tanta correria hoje que muitas vezes não é possível. Acredito que estou conseguindo ajudar muitos pacientes. Alguns que até dizem se inspirar no meu exemplo".

A meta do profissional é um trabalho focado na família. Isso porque, ele conta, não é apenas a pessoa com deficiência que necessita de atendimento especializado. É importante também ao núcleo familiar trabalhar em casa.

"Eu sempre tive muito amor e carinho em casa, então entendo a importância que é", defende. "Porém, muitos deficientes não contam com esse suporte e por isso não sabem o quanto são capazes e onde podem chegar".

Independência

Como qualquer outra pessoa, em meio ao corre-corre, com trabalho e estudo, Raí encontra tempo para sair à noite, viajar e namorar.

A liberdade e a independência, defende, são algo pelo qual está lutando desde criança e do qual não abrirá mão.

"A música tem um lugar muito especial na minha vida, então soube que a Avril Lavigne viria ao Brasil no ano passado. Nem pensei duas vezes. Comprei as passagens e fui para São Paulo ouvi-la ao vivo".

E Raí voltará a São Paulo em novembro para acompanhar ao vivo o fenômeno RBD, que tem espetáculos marcados para este final de ano.

"Assisto a muitos shows e é legal porque há umas regalias", se diverte. "Já consegui conhecer muitos nomes que admiro, porque a gente vai ao camarim e são mais receptivos por se tratar de uma pessoa com deficiência querendo conhecê-los".


Competência

À frente do Espaço Criar, a psicanalista Katya de Azevedo Araújo explica que comanda um time de psicólogos no centro de atendimento. Ao indicar o encaminhamento a Raí, esclarece ao paciente que se trata de um deficiente visual com a mesma qualificação que os demais profissionais.

"Não houve preconceito e a aceitação tem sido ótima desde que ele está com a gente", revela. "É claro que pela própria sensibilidade e o entendimento que ele tem, o atendimento a pessoas com algum tipo de deficiência acaba sendo diferenciado".

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