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Notícias | Mundo Análise

América do Sul entra em ponto de ebulição

Questão econômica, desigualdade e violência estão na raiz das agitações em países latino-americanos

Por Débora Ertel
Publicado em: 26.10.2019 às 05:00 Última atualização: 26.10.2019 às 08:56

Chile: embate entre manifestantes e polícia em Santiago Foto: AFP
Muito longe de um gigante que adormece, do Chuí para além da linha do Equador a América do Sul literalmente ferve. E não são apenas os vulcões da Cordilheira dos Andes que estão em ebulição, mas os países que compõem o sul do continente. Se no começo do ano as atenções se voltavam para a Venezuela, que enfrenta a maior crise migratória da sua história, agora os sul-americanos se preocupam com o Chile. Desde a sexta-feira da semana passada, o país vive uma situação de convulsão social e violência não registrada havia décadas. Até o momento, 18 pessoas morreram nos conflitos e o Exército voltou para as ruas, com toque de recolher, situação que os chilenos não presenciavam desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, em 1990. Na Colômbia, o fantasma das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc) voltou a assombrar. Temos ainda o episódio das eleições na Bolívia, onde Evo Morales foi apontado como vencedor do pleito, a quarta eleição consecutiva. Parte da população foi para as ruas pedindo segundo turno, pois há suspeita de fraude. O pedido de uma disputa entre Morales e outro candidato Carlos Mesa, inclusive, é apoiado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União Europeia.

Falando sobre eleições, uruguaios e argentinos vão às urnas neste domingo. A expectativa no Uruguai é que o pleito vá para o segundo turno, com clima aparente de calmaria. Já na Argentina, as apostas são de que Mauricio Macri deixará a Casa Rosada para dar lugar aos peronistas Alberto Fernandez e Cristina Kirchner.

No meio deste turbilhão está o Brasil, um país continental que tem um novo governo e também já passou por um período intenso de manifestações em 2013. Na avaliação da mestre em Estudos Históricos Latino-americanos e coordenadora do curso de História da Universidade Feevale, Márcia Blanco Cardoso, o que se presencia hoje faz parte de um contexto maior, não se tratando de um fato isolado. "Nós vivenciamos na virada nos anos 2000 um período econômico muito grande que, num contexto mais amplo, gerou extrema desigualdade e a polarização de discussões", comenta Márcia. Isso trouxe à tona questões que estavam adormecidas e que são sentidas em todo o mundo. "Basta ver o que se vive hoje em Hong-Kong, no Líbano e na Cataluña", complementa. No entanto, a professora destaca que cada país vive diferentes lutas, com motivos particulares, nacionais, que explodem dentro de um contexto global.

Para o cientista político e professor de Relações Internacionais e de Jornalismo da Unisinos, Bruno Lima Rocha, a série de levantes populares e as crises econômicas vividas neste ano pela América Latina não são novidade. "Elas reforçam a estrutura de um modelo do ciclo rosado, de um governo de centro-esquerda, que não chegou mudar as condições sociais e de reformas que não atendem a vontade popular", analisa.

Conforme Rocha, após a década de 90 se viveu um período de ciclos de crescimento, com exportação de produtos primária. Mas ele destaca a falta de estratégia dos países latino-americanos em disputar o poder internacional, ofertando a população como mão de obra barata. Neste ponto, ele cita o caso do Chile, que era visto por muitos como a menina dos olhos. "Hoje temos um sistema onde metade do país vive abaixo da linha da pobreza e os pobres estão cada mais fragilizados", diz. Sobre o país chileno, Márcia pondera que o problema não são os 20 centavos de aumento no preço do metrô (as manifestações começaram depois do reajuste na tarifa). "Diferentes grupos se reuniram e foram para as ruas. Não existe uma liderança nacional para isso. Não é só o transporte, as aposentadorias. Tem uma questão de pobreza aí", ressalta.

Os dois pesquisadores não acreditam que o Brasil, neste momento, possam sofrer reflexos das crises vizinha e também presenciar levantes. "Não acontece por contágio e o estopim não é espontâneo", diz Rocha. Já Márcia salienta que, emboras as lutas sejam semelhantes, a história nunca se repete e os fatos são sempre novos. "Hoje as discussões são favorecidas pelas redes sociais, por uma população que tem mais acesso à escolaridade", conclui.

As passagens foram a gota d´água

Alfredo Fleischmann Castillo Foto: Arquivo pessoal
Professor de Educação Física, o chileno Alfredo Fleischmann Castillo, 45 anos, é ex-morador de Caxias do Sul e em duas semanas aterriza novamente em terras gaúchas. De acordo com ele, a maioria das manifestações são pacíficas, embora o descontamento com o governo seja generalizado. Ele destaca que a população sabe que não pode desobedecer a lei e, por enquanto, as forças policiais permitem os atos populares. “Mas desde que foi decretado o ‘Toque de Queda’, ninguém pode circular nas ruas depois das 21 horas. São alguns desajustados que promovem nas manifestações roubos e saques”, descreve. Conforme Castillo, diante do toque de recolher, tentaram desestabilizar a rede de transporte público na capital Santiago. “Colocaram fogo nas estações de trens subterrâneas. Eu acho que essas são profissionais do terrorismo. Aqui se está investigando a hipótese de serem enviados pelo regime de Chavismo e Nicolás Maduro”, conta. No entanto, o professor salienta que a crise econômica é severa, com alta nos impostos, salários pequenos e pagamentos miseráveis para os trabalhadores aposentados. “E um sem número de outras coisas que o atual governo e os anteriores foram omissos no momento de trabalhar por mais justiça social”, pondera. Na avaliação dele, esses motivos foram que detonaram as manifestações a partir do aumento no valor do transporte público. “As passagens foram a gota d´água”, dispara. Na sua avaliação, o governo já está dando vários sinais concretos para melhorar a situação para voltar a normalidade o mais breve possível.

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Insatisfação manifestada no voto popular

Natural de La Plata, Província de Buenos Aires, o professor Hernan Sanchez, 42, já não vive na Argentina há 18 anos, residindo em Novo Hamburgo. Ele prevê a vitória de Alberto Fernandez. "As pessoas não vão mudar o seu ponto de vista nas prévias para cá, onde o Macri já não conseguiu vencer", comenta. Conforme Sanchez, o panorama econômico e social está complicado na Argentina. "Esse voto de domingo, por assim dizer, será um castigo para o governo por tudo aquilo que fez", avalia. De acordo com ele, há muito aumento de preços e a inflação está alta, além de haver pouca oferta de emprego e alta nos impostos. Para Sanchez, a população não está preocupada em ter um governo que seja ou não peronista. "Mas que nos dê o que comer, que não nos mate."

Depois de domingo, tudo ficará mais caro

Maria Julieta Abba Foto: Arquivo pessoal
As eleições deste domingo é um dos assuntos que domina as conversas que a professora argentina Maria Julieta Abba, 32, têm com amigos e familiares que moram no país vizinho. Morando em Novo Hamburgo há cinco anos, depois das eleições primárias, que indicavam a possível derrota de Macri, Julieta conta que o dólar disparou. "Minha mãe precisa reformar e já comprou todo o material de construção agora porque sabe que, depois de domingo, tudo ficará ainda mais caro", conta. Ela explica que os produtos sobem tanto que ninguém mais sabe o que é caro e o que é barato. "Eu mesma tenho parentes que foram demitidos, amigos que são jovens e não conseguem trabalho", relata. Para Julieta, nas urnas o povo argentino vai demonstrar todo o seu descontentamento.

 

O que pode acontecer com o Brasil?

Henrique Keske, cientista político Foto: Débora Ertel/GES-Especial
Para o cientista política e integrante do Observatório de Direitos Humanos da UniRitter Henrique Keske a conta que os governos vizinhos estão pagando na América do Sul pode chegar até o Brasil. De acordo com ele, a distribuição de renda é eficiente por meio do emprego e, no País, existem 13 milhões de desempregados. “O governo ainda não apresentou um programa de governo para retomar a economia. O único projeto é a reforma da previdência e o foco está na pauta moralista, o que não segura e não impede manifestações massivas”, analisa. Keske ainda chama atenção para o fato do governo Bolsonaro não ter sustentação institucional no congresso e enfrentar uma divisão dentro do próprio partido.
Analisando o cenário latino-americano, o cientista política explica que todos os governos tentaram ate hoje fazer algo que já é realidade na Europa, ou seja, implantar o estado de bem-estar social. Situação que só é efetivada com a distribuição de renda entre a população. “Mas houve uma falha ao tentar fazer isso. O exemplo emblemático é o Chile que implantou o estado mínimo e privatizou a saúde, a educação e a previdência, o que concentrou ainda mais a renda”, diz. Keske ainda critica o governo Macri, na Argentina, que fracassou e provavelmente será retirado do poder neste domingo. “Isso liga o sinal de alerta no Brasil. Se em seis meses não gerar mais emprego, esse estopim pode explodir aqui”, pondera.

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