Muito longe de um gigante que adormece, do Chuí para além da linha do Equador a América do Sul literalmente ferve. E não são apenas os vulcões da Cordilheira dos Andes que estão em ebulição, mas os países que compõem o sul do continente. Se no começo do ano as atenções se voltavam para a Venezuela, que enfrenta a maior crise migratória da sua história, agora os sul-americanos se preocupam com o Chile. Desde a sexta-feira da semana passada, o país vive uma situação de convulsão social e violência não registrada havia décadas. Até o momento, 18 pessoas morreram nos conflitos e o Exército voltou para as ruas, com toque de recolher, situação que os chilenos não presenciavam desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, em 1990. Na Colômbia, o fantasma das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc) voltou a assombrar. Temos ainda o episódio das eleições na Bolívia, onde Evo Morales foi apontado como vencedor do pleito, a quarta eleição consecutiva. Parte da população foi para as ruas pedindo segundo turno, pois há suspeita de fraude. O pedido de uma disputa entre Morales e outro candidato Carlos Mesa, inclusive, é apoiado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União Europeia.
Falando sobre eleições, uruguaios e argentinos vão às urnas neste domingo. A expectativa no Uruguai é que o pleito vá para o segundo turno, com clima aparente de calmaria. Já na Argentina, as apostas são de que Mauricio Macri deixará a Casa Rosada para dar lugar aos peronistas Alberto Fernandez e Cristina Kirchner.
No meio deste turbilhão está o Brasil, um país continental que tem um novo governo e também já passou por um período intenso de manifestações em 2013. Na avaliação da mestre em Estudos Históricos Latino-americanos e coordenadora do curso de História da Universidade Feevale, Márcia Blanco Cardoso, o que se presencia hoje faz parte de um contexto maior, não se tratando de um fato isolado. "Nós vivenciamos na virada nos anos 2000 um período econômico muito grande que, num contexto mais amplo, gerou extrema desigualdade e a polarização de discussões", comenta Márcia. Isso trouxe à tona questões que estavam adormecidas e que são sentidas em todo o mundo. "Basta ver o que se vive hoje em Hong-Kong, no Líbano e na Cataluña", complementa. No entanto, a professora destaca que cada país vive diferentes lutas, com motivos particulares, nacionais, que explodem dentro de um contexto global.
Para o cientista político e professor de Relações Internacionais e de Jornalismo da Unisinos, Bruno Lima Rocha, a série de levantes populares e as crises econômicas vividas neste ano pela América Latina não são novidade. "Elas reforçam a estrutura de um modelo do ciclo rosado, de um governo de centro-esquerda, que não chegou mudar as condições sociais e de reformas que não atendem a vontade popular", analisa.
Conforme Rocha, após a década de 90 se viveu um período de ciclos de crescimento, com exportação de produtos primária. Mas ele destaca a falta de estratégia dos países latino-americanos em disputar o poder internacional, ofertando a população como mão de obra barata. Neste ponto, ele cita o caso do Chile, que era visto por muitos como a menina dos olhos. "Hoje temos um sistema onde metade do país vive abaixo da linha da pobreza e os pobres estão cada mais fragilizados", diz. Sobre o país chileno, Márcia pondera que o problema não são os 20 centavos de aumento no preço do metrô (as manifestações começaram depois do reajuste na tarifa). "Diferentes grupos se reuniram e foram para as ruas. Não existe uma liderança nacional para isso. Não é só o transporte, as aposentadorias. Tem uma questão de pobreza aí", ressalta.
Os dois pesquisadores não acreditam que o Brasil, neste momento, possam sofrer reflexos das crises vizinha e também presenciar levantes. "Não acontece por contágio e o estopim não é espontâneo", diz Rocha. Já Márcia salienta que, emboras as lutas sejam semelhantes, a história nunca se repete e os fatos são sempre novos. "Hoje as discussões são favorecidas pelas redes sociais, por uma população que tem mais acesso à escolaridade", conclui.
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Natural de La Plata, Província de Buenos Aires, o professor Hernan Sanchez, 42, já não vive na Argentina há 18 anos, residindo em Novo Hamburgo. Ele prevê a vitória de Alberto Fernandez. "As pessoas não vão mudar o seu ponto de vista nas prévias para cá, onde o Macri já não conseguiu vencer", comenta. Conforme Sanchez, o panorama econômico e social está complicado na Argentina. "Esse voto de domingo, por assim dizer, será um castigo para o governo por tudo aquilo que fez", avalia. De acordo com ele, há muito aumento de preços e a inflação está alta, além de haver pouca oferta de emprego e alta nos impostos. Para Sanchez, a população não está preocupada em ter um governo que seja ou não peronista. "Mas que nos dê o que comer, que não nos mate."
Analisando o cenário latino-americano, o cientista política explica que todos os governos tentaram ate hoje fazer algo que já é realidade na Europa, ou seja, implantar o estado de bem-estar social. Situação que só é efetivada com a distribuição de renda entre a população. “Mas houve uma falha ao tentar fazer isso. O exemplo emblemático é o Chile que implantou o estado mínimo e privatizou a saúde, a educação e a previdência, o que concentrou ainda mais a renda”, diz. Keske ainda critica o governo Macri, na Argentina, que fracassou e provavelmente será retirado do poder neste domingo. “Isso liga o sinal de alerta no Brasil. Se em seis meses não gerar mais emprego, esse estopim pode explodir aqui”, pondera.