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Notícias | Região Exclusivo

Três empresários são indiciados por formação de milícia no Vale do Sinos

Jovem torturado teria desaparecido nas mãos de justiceiros com base em Sapiranga, suspeitos ainda de balear idoso, esfaquear borracheiro e espancar drogados

Por Silvio Milani
Publicado em: 31.10.2019 às 05:00 Última atualização: 31.10.2019 às 12:07

Polícia pede que informações sobre a identidade e paradeiro do desaparecido sejam repassadas à Delegacia de Sapiranga, pelo telefone 3599-1066, ou para o whats-denúncia 99908-2057 Foto: Reprodução
O jovem está com as mãos amarradas para trás no porta-malas. Sangra muito no rosto. Depois é exibido em fotos, com sinais de tortura, como se fosse um troféu em poder dos agressores. As imagens, postadas em grupo privado de aplicativo de celular, são as últimas do rapaz. Vazou para a Polícia, que não sabe quem é a vítima. É o principal mistério que envolve uma investigação sobre formação de milícia armada no Vale do Sinos, com base em Sapiranga, suspeita ainda de torturar e esfaquear um borracheiro, balear um idoso, espancar drogados e alvejar um cachorro com tiro de pistola. A reportagem entrou em contato com o suposto líder, mas ele não quis se manifestar.

O jovem do porta-malas seria autor de furtos e teria desaparecido nas mãos de um grupo de justiceiros, formado por empresários e comerciantes. O crime aconteceu por volta das 17 horas de 8 de junho do ano passado, no bairro São Luiz, em Sapiranga, e o inquérito foi concluído ontem, com o inédito indiciamento na região por formação de milícia. Segundo o delegado da cidade, Fernando Pires Branco, o maior obstáculo ao trabalho da Polícia é o medo das vítimas. "Estamos investigando pessoas com dinheiro e certo poder." Os três indiciados, entre eles o empresário apontado como líder, segundo o delegado, preferiram ficar em silêncio.

A invasão 

Quatro homens com pistolas em punho entram de carro em uma borracharia na Rua Presidente Kennedy e trancam a porta. Perguntam sobre roda de Corcel e o dono mostra uma deixada há dois dias, para conserto, por um rapaz que não conhece. Os invasores arrastam o borracheiro até o carro deles, um Cruze, abrem o porta-malas e mostram um jovem amarrado e muito machucado. "É esse?" O borracheiro reconhece o ferido como o cliente da roda e passa a ser torturado. Leva chutes, socos e estocadas de faca pelo corpo. Deixado no chão com fraturas nas costelas e perfurações, é a única testemunha do jovem no porta-malas, levado embora para nunca mais ser visto, a não ser na foto que circulou em grupo fechado de WhatsApp poucos dias depois. Assustado e ensanguentado. "Um ainda não está identificado e acreditamos que haja mais envolvidos, como ficou evidenciado em outros casos." Os nomes dos suspeitos não são revelados porque a investigação está em curso.

Delegado quer saber quem é o "rapaz do porta-malas"

Para o delegado, o principal desafio é chegar ao jovem do porta-malas. "Temos uma testemunha que viu esse rapaz e a imagem de um miliciano se exibindo com o rapaz arrebentado. Percorrermos o bairro São Luiz e outros lugares na tentativa de identificar essa vítima, mas ninguém sabe, ninguém viu." Branco frisa que, no depoimento dos suspeitos, foi insistido para que contassem. "Salientamos que, pelo bem da verdade, dissessem quem é e onde está o indivíduo. Os suspeitos silenciaram." Um banco de imagens foi usado, porém o desaparecido, de pele clara e cabelos castanhos escuros, não aparece no sistema. "Pode ser que esteja vivo e tenha fugido com medo. Ou morto." A roda de Corcel, que teria sido furtada pelo desaparecido, foi levada pelos agressores.

"Eles me machucaram bastante"

O borracheiro agredido, que foi hospitalizado e chegou a ficar 45 dias afastado do trabalho em razão das lesões, afirma que não conhece o jovem do porta-malas. "Só vi ele quando trouxe uma roda de Corcel para eu arrumar e no dia seguinte, dentro do porta-malas dos caras. Tentei descobrir de onde é. De onde surgiu esse rapaz? Uns comentaram que é de Sapucaia, Canoas, para aqueles lados. Só sei que me machucaram bastante por causa dele", conta a vítima de 31 anos.

Ele recorda os momentos de pânico. "Quando abriram o porta-malas e mostraram o rapaz, muito machucado na cabeça, tomei um susto. Perguntei o que estavam fazendo com ele e daí voaram em mim. Foi tudo de surpresa. Me espancaram e foram embora com esse rapaz amarrado." O borracheiro recorda que ainda sofreu ameaças. "Disseram que iam botar fogo na borracharia, mas depois nunca mais tive contato com essa gente. Fiquei na minha. Minha vida é trabalhar. Atendo das 7 da manhã às 7 da noite."

Testemunha aponta participação de policial militar

Os três que invadiram a borracharia e teriam dado sumiço no jovem do porta-malas foram identificados e indiciados, sustenta o delegado. Falta descobrir quem é o quarto armado. De acordo com uma testemunha, seria um brigadiano. No depoimento à Polícia, entretanto, a pessoa não passou dados que levem a uma autoria. O comandante da Brigada Militar no Vale do Sinos, coronel Vitor Hugo Konarzewski, frisa que a corporação não foi comunicada sobre a suspeita. "A Brigada Militar não compactua com qualquer desvio de conduta. Se comprovada a participação de um membro da instituição, a responsabilização será imposta na forma da lei." Outra testemunha viu a movimentação do lado de fora da borracharia. "Eu estava entrando na minha caminhonete, perto dali, quando os caras entraram de carro, desceram e fecharam a porta. Pensei que era um assalto. Não tinha o que fazer, porque estavam armados. Saí atrás de ajuda, pois estava sem telefone. Cheguei em casa e liguei pra Polícia do meu fixo."

Suspeitos podem pegar até 18 anos de prisão

Além do crime de formação de milícia, com pena de dois a quatro anos, os suspeitos foram enquadrados em tortura (dois a oito anos) e ameaça (um a seis meses). O inquérito foi entregue na tarde desta quarta-feira no Foro de Sapiranga. "Não é admissível que particulares tomem para si funções do Estado. As pessoas têm medo deles por causa da fama de justiceiros", declara o delegado. As investigações continuam. 

Até cachorro foi baleado

Recentemente, segundo o delegado, o grupo foi espancar drogados por furto de fios telefônicos no bairro São Jacó, em Sapiranga, e um cachorro partiu em defesa do dono agredido. "Um dos milicianos atirou no animal, que ficou sequelado. Com medo, ninguém quis fazer ocorrência."

Abordaram homem e deram tiro na perna

Sob pretexto de reprimir um filho que seria agressivo com a mãe, o grupo suspeito, com apoio de um segurança, agiu no bairro Morro Pelado, em Taquara, em agosto do ano passado. Como se fossem da Polícia, abordaram um homem de 61 anos e deram um tiro na perna dele.

Vestígios

Suspeito exibe bombacha com sangue da vítima Foto: Reprodução
Segundo a Polícia, na mesma época em que jovem desapareceu, um suspeito exibia bombacha suja com o sangue da vítima.

Professor alerta para descontrole

Especialista em segurança pública, o professor da Feevale Charles Kieling diz que milícias representam uma ameaça de descontrole social. "Quando surgiram no Rio de Janeiro, eram vistas como grupos de combate ao crime, mas acabaram se tornando poderosas organizações criminosas. Pois assim como fazem justiça matando bandidos, também matam policiais e oprimem a população, por interesses econômicos." Segundo o professor, as milícias começaram a se desenvolver no Rio Grande do Sul em 2014. "Elas estão aí, financiadas por empresários ligados ao crime organizado e, ao mesmo tempo, às estruturas de Estado. Se pensam na segurança, é somente na deles. Milícia é uma privatização do direito de matar alguém." Para desbaratar essas redes, conforme Kieling, é necessário um órgão estatal independente. "Acreditar que pessoas honestas vão sair fazendo justiça com as próprias mãos é aceitar um estado de barbárie ou a ausência do Estado."

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