A soltura mais polêmica de preso no Estado por causa do coronavírus, no fim de março, impactou um condomínio de alto padrão no Vale do Sinos. Condenado a mais de 70 anos por homicídios, tráfico e roubo, Fabrício Santos da Silva, o Nenê, 37 anos, saiu de uma galeria do Presídio Central de Porto Alegre para uma casa de R$ 2 milhões no bairro Encosta do Sol, em Estância Velha.
Apontado como um dos líderes da facção Os Manos, Nenê não se importava em transitar, pelas privativas ruas do clube residencial, com a tornozeleira eletrônica à mostra. A apreensão pairou entre os moradores até o último dia 1º, quando o criminoso rompeu o aparelho de monitoramento e fugiu, conforme revelado há duas semanas pelo Jornal NH.
De acordo com vizinhos, o sobrado estava alugado desde o fim de novembro para a família do presidiário. "Tinha uma mulher e crianças, que acho que eram filhos", conta uma moradora, que pediu para não ser identificada. Ela observa que as visitas eram constantes. "A casa estava sempre cheia."
A presença de um criminoso de alta periculosidade foi logo constatada pela vistosa tornozeleira, associada a matérias jornalísticas. "Eram mães proibindo as crianças de andarem de bicicleta para aquele lado", recorda a vizinha. O valor do aluguel não foi informado. Moradores acreditam que toda a família foi embora. "A casa está fechada desde o início do mês", comenta um deles.
De família pobre do bairro Canudos, em Novo Hamburgo, onde começou a escalada no crime, Nenê usufruiu de requinte e segurança nos poucos meses de inquilinato em Estância. Tinha à disposição duas piscinas diferenciadas, uma com "borda infinita" e outra com raia de 25 metros para natação, completa academia de musculação, pista para caminhadas junto à natureza, quatro quadras esportivas, das quais duas de tênis com iluminação especial, áreas de lazer abertas e fechadas, e a pompa de uma praça de águas, entre vários outros atrativos que cercam residências avaliadas de R$ 1,3 milhão e R$ 3 milhões. Na segurança, portaria e ronda 24 horas, videomonitoramento e acesso dos moradores com código de identificação automática.
Os advogados de Nenê sustentaram que ele é do grupo de risco da Covid-19, por ser hipertenso, e a Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre decidiu conceder a chamada prisão domiciliar humanitária. O Ministério Público tentou reverter, por meio de reiterados argumentos sobre a periculosidade e influência do apenado no crime organizado. Serviços de inteligência das polícias alertavam para a certeza de fuga. A suspeita é que Nenê tenha deixado o País.
Desde março, cerca de 2 mil detentos foram soltos pela Justiça no Estado em razão da pandemia. A Polícia prendeu um advogado de Gravataí, em abril, por conseguir soltar clientes por meio de atestados médicos falsos. Outros três defensores são investigados.
"Acredito que tenha sido um erro a concessão das prisões domiciliares para esses delinquentes com base no argumento de que deveriam ser protegidos por estarem no grupo de risco", declara o delegado Rodrigo Zucco, titular da 2ª DP de São Leopoldo, que mais atua contra o crime organizado no Vale do Sinos por ser especializada em furtos e roubos de veículos. "Não houve pandemia no meio carcerário e agora a polícia vai ter o retrabalho de tentar localizar um indivíduo de altíssima periculosidade, expondo a vida não só dos policiais, como da própria população, que fica sujeita aos crimes por ele praticados, como homicídios, roubos e tráfico." Para Zucco, a fuga de Nenê já era esperada. "Até o Poder Judiciário sabia que ele ia fugir. Com todas essas condenações e processos em andamento, é natural que isso ocorresse".
Nenê foi apontado como um dos organizadores da escavação de túnel para fuga do Presídio Central de Porto Alegre. Com investimento de milhões, o engenhoso projeto foi posto em prática no segundo semestre de 2016. A ideia era libertar 200 detentos em fevereiro de 2017. O plano foi o principal motivo para a remoção dele para a Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, na Operação Pulso Firme da Secretaria da Segurança Pública, em julho de 2017, que pretendia isolar lideranças de facções gaúchas. Mas Nenê ficou apenas três meses no nordeste. Em outubro do mesmo ano, a VEC de Porto Alegre mandou trazê-lo de volta, sob argumento de que nao havia provas suficientes do envolvimento dele no plano do túnel.
Não é o primeiro trauma relacionado à segurança pública que abala o luxuoso condomínio de Estância Velha. Moradores foram surpreendidos, às 7 horas de 21 de maio do ano passado, por viaturas da Polícia Federal que cumpriam dois mandados de prisão e um de busca e apreensão. Era a deflagração da Operação Egypto, que desbaratou fraudes financeiras milionárias da empresa InDeal, de Novo Hamburgo. O alvo no clube residencial era um dos sócios, Francisco Daniel Lima de Freitas, 46, que foi preso com a esposa na casa que havia comprado há poucos meses. Não é a mesma alugada por Nenê.