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Notícias | Região Rara e degenerativa

AME: a doença do remédio mais caro do mundo

Atrofia Muscular Espinhal (AME) ganhou visibilidade por causa das campanhas para custear tratamento, que com a cotação do dólar neste ano chegou a R$ 12 milhões

Por Ermilo Drews
Publicado em: 26.09.2020 às 07:00 Última atualização: 26.09.2020 às 14:47

Lívia Teles recebeu a dose de Zolgensma nos Estados Unidos Foto: Divulgação
Imagine você desejar muito um filho, ficar na expectativa para vê-lo nascer e crescer, dedicando a melhor versão de si para ele. O bebê nasce e aquele entusiasmo único na vida começa a dar espaço à preocupação. A criança tem dificuldades de se mexer e de segurar a cabeça. Até para engolir e respirar é complicado. Você vai ao médico, faz exames e descobre que a doença do seu filho é rara, atinge entre sete e dez bebês a cada 100 mil nascidos vivos. Não tem cura e a probabilidade do seu filho morrer ainda criança é alta. Por que com ele? A pergunta é inevitável. Mas você não tem tempo para lamentar, questionar o destino. A doença é a principal causa genética de morte em crianças com menos de dois anos. E o medicamento que promete manter seu filho respirando e com qualidade de vida custa o que a maioria das pessoas jamais juntará na vida toda. Você precisa correr contra o tempo para salvá-lo.

Atrofia Muscular Espinhal (AME). Este é o nome da agonia. É uma das oito mil doenças raras registradas no mundo - para ser considerada rara, a enfermidade precisa atingir 65 a cada 100 mil pessoas. Degenerativa e hereditária, ela interfere na capacidade do corpo de produzir uma proteína (a SMN) essencial para a sobrevivência dos neurônios motores, que controlam atividades como andar, falar, respirar e engolir.

Vitória de Lívia em busca do tratamento, com a mãe Luana (c), dá esperança para outros casos Foto: Arquivo pessoal
No Estado, a AME ganhou visibilidade em 2020 após o surgimento de campanhas por doações para o tratamento de crianças gaúchas com um novo medicamento, considerado o mais caro do mundo e que atingiu cotação de R$ 12 milhões: o zolgensma.

Nas redes sociais, é comum encontrar perfis voltados a financiamentos coletivos promovidos por famílias que, após o diagnóstico, correm para arrecadar o dinheiro necessário para a compra da medicação. E uma delas já conquistou o que parecia impossível: conseguir valor suficiente para o tratamento. É raro o gaúcho que não ouviu falar no nome de Lívia Teles, hoje com 1 ano e 11 meses. A família da gauchinha de Teutônia, no Vale do Taquari, mobilizou gente no Estado inteiro, país afora e até no exterior para conseguir bancar o tratamento que promete mantê-la respirando e com qualidade de vida. Desde o final de julho ela está em Boston, Estados Unidos, onde recebeu a dose única do zolgensma e segue em tratamento.

Os pais Luana Cristine Diehl Teles, 30, e Anderson Henrique Teles, 30, contam que a filha tem reagido bem. "A gente já percebe algumas alterações que nos enchem de esperança. Ainda assim, é muito cedo para poder dizer tudo o que o tratamento vai fazer por ela e como ela vai reagir ao longo do tempo. Agora, estamos nessa fase de monitoramento das reações. Por isso, não sabemos ainda quando vamos voltar ao Brasil", conta Anderson.

O milagre veio antes do tratamento

Festas, pedágios, venda de produtos, lives, mobilização pela Internet. Foi com ações como estas que a família de Lívia conseguiu pagar pelo tratamento. Os pais não têm ideia de quantas pessoas se envolveram na campanha - a maioria desconhecida, mas os números nas redes sociais dão uma dimensão da campanha: mais de 80 mil seguidores no Instagram e mais de 60 mil no Facebook.

As pessoas realmente abraçaram nossa filha e se doaram de uma maneira difícil de acreditar. Não foi apenas o dinheiro que garantiu o tratamento, mas toda essa mobilização.

Luana Cristine Diehl Teles, mãe da Lívia

"Sabemos que foram milhares de pessoas em todos os cantos do Brasil e em vários lugares do mundo e talvez esse seja o grande milagre: conseguir fazer com que tantas pessoas diferentes e de diferentes lugares se unissem por um objetivo comum e nem sempre pelas mesmas razões. Num mundo como o que vivemos hoje, essa união e toda essa energia boa que as pessoas fizeram circular já é um grande milagre", conta Anderson. 

Vitória da esperança

Tão logo os pais perceberam algo errado em Lívia a levaram ao médico. Assim, aos quatro meses ela já tinha o diagnóstico para AME tipo 1 e aos cinco meses tomou a primeira dose de spinraza, único medicamento fornecido pelo SUS para o tratamento. "A confirmação deixa a gente sem chão", admite Anderson. Lívia estava na UTI, intubada e sedada, quando veio a notícia da aprovação da zolgensma nos Estados Unidos (ainda não fornecido pelo SUS). "Nos deu esperança e desespero pelo valor", lembra Anderson. Mas com o apoio de milhares de pessoas, em um ano eles juntaram o dinheiro, complementado com recursos da União, por meio de decisão judicial. A esperança havia vencido.

Tipos de AME

Zero: bebês já nascem com fraqueza muscular, insuficiência respiratória e defeitos cardíacos. Costumam não resistir além do primeiro mês.

Um: sintomas aparecem até o sexto mês de vida. É o mais comum e um dos mais graves, atingindo 60% dos pacientes. A criança apresenta movimentos fracos e necessita de auxílio para respirar (suporte de ventilação) normalmente antes de completar um ano. Geralmente não conseguem sustentar o pescoço e não sentam sem apoio, além de terem dificuldade de engolir. A criança apresenta tremor na língua e normalmente tem choro e tosse fracos.

Dois: o início dos sintomas e da fraqueza muscular ocorre entre os 6 e os 18 meses. A criança consegue sentar sem apoio, porém, não chega a andar. Também pode apresentar dificuldade respiratória em graus variados e problemas de deglutição, mas em menor grau do que no tipo 1. Ao longo de seu desenvolvimento, podem surgir anomalias esqueléticas e deformidades articulares.

Três: sintomas acontecem após os 18 meses de idade. Os pacientes apresentam capacidade de ficar em pé e andar, mas devido à progressão da doença podem perder essa habilidade ao longo da vida. As pernas são mais gravemente afetadas do que os braços.

Quatro: tem início na vida adulta e o paciente apresenta fraqueza que predomina em membros inferiores, levando dificuldade para andar.

Fonte: Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (Iname)

Tratamento envolve remédios com valores fora da realidade

Atualmente, o único medicamento fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento da AME é o spinraza, incorporado em abril de 2019 e fornecido desde novembro do ano passado. Ele é oferecido apenas para o tipo 1 da doença. O Ministério da Saúde chegou a anunciar a oferta do medicamento para os tipos 2 e 3 da doença, na modalidade de compartilhamento de risco, que previa o pagamento pelo SUS apenas se houvesse melhora da saúde do paciente. Mas esta ideia não avançou.

A decisão do governo federal de incorporar o spinraza visou reduzir decisões judiciais desfavoráveis à União. Em 2018, 90 pacientes foram atendidos, a partir de demandas judiciais que solicitavam a oferta do spinraza, ao custo de R$ 115,9 milhões. Cada paciente representou, em média, custo de R$ 1,3 milhão. Na época, a medicação era adquirida pela rede pública por até R$ 420 mil a ampola. Após a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) estipular um teto de preço, houve uma redução de 50% em relação ao empregado em 2017. Com a incorporação pelo SUS, que garante uma compra anual centralizada pelo Ministério da Saúde, o valor poderá ser negociado com a empresa fabricante do produto, baixando mais os custos.

Já em 17 de agosto deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou o registro do medicamento zolgensma. A autorização foi dada em caráter excepcional, o que implica a realização de estudos adicionais acerca de sua eficácia. A empresa responsável pelo zolgensma, a Novartis, assinou um termo de compromisso assumindo a obrigação de envio de análises sobre a efetividade do tratamento e a promoção de ensaios clínicos com pacientes brasileiros.

Para reduzir um pouco o custo a pacientes que queiram fazer o tratamento por conta própria, o governo federal zerou o imposto de importação do produto. No Estado, o governo gaúcho isentou o medicamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o que deve reduzir o valor em R$ 2 milhões. Apesar disso, o alto custo (aproximadamente dois milhões de dólares) segue sendo um obstáculo. Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas em Acesso a Medicamentos Jorge Bermudez considera o valor do tratamento “fora da realidade”.

Sobre o custo do tratamento, a Novartis afirma que existem no mercado moléculas para tratamento contínuo da enfermidade, “mas o grande diferencial é o zolgensma ser de aplicação única. Quando comparado a tratamentos crônicos de outras enfermidades , como as focadas no tratamento das mucopolissacaridose (MPS IV e MPS IVA), cuja expectativa de vida do paciente é de 40 anos – com início de tratamento por volta dos 5 anos de idade – pode-se extrapolar que o custo total poderia chegar a 87 milhões em uso contínuo”. Ainda de acordo com a empresa, o custo de tais terapias reflete décadas de pesquisas científicas, investimentos em cadeia logística e manufatura em larga escala, bem como custos diretos e indiretos com capacitação de centros de referência, hospitais e profissionais.

Diferença entre medicamentos disponíveis

SPINRAZA

Spinraza Foto: Divulgação

Spinraza (nusinersena) é um oligonucleotídeo antisense - pedaço do ácido ribonucleico (RNA) que interage com o DNA dos pacientes com AME. Isso ativa um gene silencioso, o SMN2, a fazer as vezes do SMN1, que falta em quem tem AME. Portanto, o spinraza usa de um gene que nosso corpo retém, o SMN2, mas que não funciona direito, e faz ele funcionar igual ao SMN1, produzindo assim a proteína deficiente e também estagnando a doença quando se inicia o tratamento. A medicação é aprovada pela Anvisa, Agência Europeia de Medicamento (EMA) e Agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (FDA). A forma de administração é pela espinha dorsal. O tratamento consiste em duas fases: na chamada fase de ataque, são administradas quatro doses por dois meses. Na fase de manutenção, que se inicia a partir da quinta dose, o paciente deve receber a aplicação a cada quatro meses, pelo resto da vida. A partir do segundo ano, recebe três doses por ano.

ZOLGENSMA

Zolgensma Foto: Divulgação


Zolgensma é a terapia gênica, que foi aprovada nos EUA em maio de 2019 pela FDA. Ele constrói uma cópia funcional do gene humano que produz a proteína responsável pelos neurônios vinculados à atividade motora. É um tratamento que melhora os níveis de proteína SMN funcional através da introdução na célula do paciente de um novo gene SMN1. Ele é aplicado diretamente na corrente sanguínea. Um vírus, o AAV9, transporta o gene de reposição para o corpo. Este vírus “infecta” as células com o novo DNA. Os resultados dos estudos clínicos são muito animadores e promissores, mas é preciso saber que o tratamento não é a cura da doença. Ele corrige o defeito genético, mas não recupera os neurônios que já morreram e não é capaz de eliminar todos os sintomas que já se evidenciaram no paciente. Também não se sabe, por se tratar de medicação nova, quanto à duração a longo prazo dos efeitos obtidos com o tratamento. Nos EUA, a medicação foi aprovada para tratar crianças com AME de até 2 anos de idade, independentemente do tipo.
Fonte: Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal

Ninguém vai deixar o seu filho morrer e ficar de braços cruzados, diz pai

Presidente da Associação Unidos pela Cura da AME, o paulista Renato Trevellin critica as ações adotadas pelo governo federal até aqui, inclusive a forma como se dá a liberação do medicamento spinraza pelo SUS. “A incorporação feita no ano passado beneficia muitos poucos, pois os pacientes com ventilação mecânica estão tendo seu tratamento negado quando solicitam, isso quando consegue fazê-lo, pois pelo fato de usarem ventilação mecânica muitas farmácias de alto custo nem aceitam o pedido”, critica. Ele também frisa que o compartilhamento de risco para os tipos 2 e 3 nunca saiu do papel. “Ou seja, as famílias perderam um ano e meio confiando no Ministério da Saúde. Esta política é lamentável, pois, ao invés de beneficiar com o tratamento, ela restringe e tira as esperanças das pessoas, que se obrigam a buscar na Justiça o medicamento, pois ninguém vai deixar o seu filho morrer e ficar de braços cruzados.”

Renato (direita) travou longa batalha para conseguir na Justiça o medicamento spinraza para o filho Gianlucca Foto: Arquivo pessoal
A associação estima que entre 1,5 mil a duas mil pessoas tenham alguns dos tipos de AME no País e acredita que pelo menos 40% já ingressou na Justiça para conseguir tratamento pelo SUS. “Agora, isso deve aumentar muito mais por causa dessa posição do Ministério da Saúde de não fazer compartilhamento de risco para os tipos 2 e 3 e esta restrição da ventilação mecânica para o tipo 1.”

Com o filho Gianlucca Trevellin com a doença, Renato sentiu na pele as dificuldades para conseguir o tratamento. “Foi um ano de luta na Justiça e só recebemos quando o juiz mandou prender o secretário da Saúde. Só por causa da liberação do spinraza já fui mais de 20 vezes a Brasília”, afirma. Dedicação que Renato não se arrepende. “Está super estável e, aos poucos, ganhando movimento.”

Ministério da Saúde desconhece o número de pacientes com AME no País

Em nota, o Ministério da Saúde (MS) informa que o spinraza atende os pacientes dentro dos critérios de inclusão preconizados no Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas, “ou seja, sem ventilação mecânica invasiva permanente”. A Pasta contabiliza a distribuição de 506 frascos do medicamento para atendimento de pacientes com AME tipo 1 desde novembro do ano passado. Questionada sobre o número de pacientes com a doença no País, o MS admitiu que não dispõe do número nem dados estatísticos porque a AME não apresenta registro ou notificação de forma obrigatória. A Pasta também não informou sobre o número de ações judiciais com pedido de tratamento envolvendo a União nem sobre a disponibilização do spinraza para pacientes com AME tipos 2 e 3, que chegou a ser anunciado pelo MS no ano passado, medida que não avançou.

Famílias daqui ainda lutam pelo zolgensma

O sucesso da campanha de Lívia Teles deu esperanças a outras famílias. Ao menos cinco no Estado realizam ações para bancar o tratamento da AME tipo 1. Duas delas são da nossa região: o Enzo Gabriel, de Novo Hamburgo, e o João Emanuel, de Lindolfo Collor.

ENZO GABRIEL, DE NOVO HAMBURGO

Enzo Gabriel Nunes Jung, de Novo Hamburgo Foto: Arquivo pessoal
Falta meio ano para Enzo Gabriel Nunes Jung, de Novo Hamburgo, completar dois, tempo limite para se submeter ao tratamento com zolgensma. A AME tipo 1 foi descoberta quando ele tinha seis meses. “Começamos a desconfiar a partir dos quatro, porque ele não firmava a cabeça, o tronco, colocava o mamá para fora. Fomos em dois médicos e num neurologista particular. Num projeto da Feevale, um fisioterapeuta desconfiou e a partir daí nos encaminhou para Porto Alegre, onde tivemos a confirmação”, lembra a mãe, Natália Nunes Teixeira, 23. Por meio da Justiça, a família conseguiu um respirador e sessões com especialistas para Enzo, que desde março faz o tratamento em casa. “Ele conseguiu o spinraza sem a Justiça. Isso estabilizou um pouco a doença.” A meta é conseguir dinheiro suficiente para custear o tratamento com o remédio “mais caro do mundo”. E ainda falta muito. Até o momento a família arrecadou pouco mais de R$ 227 mil. “Após a campanha de Lívia, voluntários migraram para auxiliar as ações voltadas ao Enzo, o que impulsionou a arrecadação.” Saiba como ajudar no Instagram @ameoenzo ou pelo www.facebook.com/ameoenzo1

JOÃO EMANUEL, DE LINDOLFO COLLOR

João Emanuel Rasch Schropfer, de Lindolfo Collor Foto: Arquivo pessoal

Foi um dia depois do Natal que a família de João Emanuel Rasch Schropfer teve o diagnóstico clínico da criança para AME tipo 1. Antes do ano-novo, ele já estava internado no Hospital de Clínicas, de Porto Alegre. No dia 12 de janeiro deste ano, o resultado do exame confirmou a doença. A campanha para custear o tratamento começou em março. De lá para cá já foram mais de 600 ações. “Estamos fazendo de tudo”, conta a mãe, Luciana Vanderleia Rasch, 40. Na próxima terça-feira, o pequeno completa 1 ano e 2 meses e a meta é arrecadar R$ 12 milhões antes dele chegar aos 2 anos - até agora chegou-se a R$ 1,2 milhão. Luciana divide o tempo entre a mobilização para arrecadar o dinheiro e os cuidados com o filho, que passa por sessões regulares com fonoaudióloga e fisioterapeutas. Com o tratamento fornecido pelo governo com o spinraza, Luciana observa avanços, mas sonha com mais. “Já perdemos uma filha com esta doença. Não quero perder outro. Vamos em busca dos tratamentos que existirem.” Mais informações no do Instagram @amejoaoemanuel ou no www.facebook.com/amejoaoemanuel

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