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Notícias | Região UM ATO DE AMOR

Filhos que 'brotam' do coração nas adoções tardias

Conforme dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, no Rio Grande do Sul há 130 adotantes que aceitam se tornar pais de alguém com idade entre 8 e 10 anos

Por Débora Ertel
Publicado em: 25.06.2022 às 05:00 Última atualização: 01.12.2022 às 21:11

Graça e Fernando Goetz, moradores de Estância Velha, fazem parte de uma lista de 130 candidatos. Mãe e pai de duas meninas, eles estão aptos a aumentar a família e aguardam para qualquer momento a notícia da chegada de um novo filho. O perfil pretendido pelo casal é de até duas crianças com até 10 anos. Nada mais.

Conforme dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, no Rio Grande do Sul há 130 adotantes que aceitam se tornar pais de alguém com idade entre 8 e 10 anos. Em contrapartida, há 36 crianças com essa faixa etária no Estado esperando para ganhar um lar. Como que essa conta não fecha?

A mesa da família, que considera importante a espiritualidade, é enfeitada com um quadro de São Luís Martin e Santa Zélia Guerín, pais de Santa Teresinha
A mesa da família, que considera importante a espiritualidade, é enfeitada com um quadro de São Luís Martin e Santa Zélia Guerín, pais de Santa Teresinha Foto: Débora Ertel/GES-Especial

A adoção está longe de ser apenas matemática, mas envolve sonhos, expectativas, frustrações, persistência e muito amor. Hoje existem no Estado 3.667 pretendentes para 485 crianças e adolescentes prontos para serem adotados. A dificuldade desta conta que não fecha está ligada ao perfil do filho desejado. A maioria dos candidatos quer adotar crianças com, no máximo, 4 anos.

Para ajudar futuros pais e mães a encontrar seus filhos, o Tribunal de Justiça promove no mês que vem o Dia do Encontro, um evento pensado para estimular a adoção tardia e dar uma chance a quem normalmente não está no topo da lista de preferência dos pretendentes. Aliás, a Coordenadoria da Infância e Juventude do Estado tem se destacado por iniciativas que estimulam a adoção.


Graça, 42 anos, e Fernando, 39, são casados há 19 anos. Com cinco anos de matrimônio descobriram que não poderiam ter filhos biológicos. Após a notícia não esperada, foram cinco anos de reflexão, estudo e oração até decidirem entrar para a fila de adoção. "Nós somos católicos. Então essa decisão foi muito pensada, para entender os planos de Deus para nós", explica Graça.

Apesar de não terem expresso predileção por sexo, cor ou qualquer outra exigência, e estarem dispostos a receberem quatro crianças, foram mais cinco anos até que o celular tocasse com a mensagem tão esperada. O casal estava com os dados incompletos no sistema e foi com a ajuda do Instituto Amigos de Lucas, de Porto Alegre, que eles conseguiram resolver o problema.

Do Estado de São Paulo veio o presente que era aguardado pelo casal há 15 anos. "Menina teimosa precisa de papai e mamãe, aceitam?", escreveu a assistente social.

Daí para frente foi um mês inteiro de conversas com a assistente social, para que Graça e Fernando garantissem que estavam prontos para receber Sabrina, na época, com 10 anos. "Ela dizia assim pra nós: 'Vocês são um casal perfeito, com tudo estruturado, tem certeza que querem receber essa menina?' Ela fazia as vezes de advogado do diabo para que a gente não fosse o próximo a magoá-la", explica Graça.

Manuela, hoje com 13 anos, não tinha uma "boa fama" no acolhimento. Aos 5 anos foi destituída da família biológica, junto com quatro irmãos. As lembranças desta época não são boas. "Era horrível! Eles saíam pra beber, fumar, dar o corpo e eu ficava cuidando de todos", isso porque a jovem era a mais velha. Inclusive, ela fazia as refeições dos irmãos biológicos. Um era bebê e teve um destino desconhecido. Já Manuela e as três irmãs foram viver em um lar. Não demorou muito para que as irmãs fossem adotadas, no entanto, a experiência não deu certo e as três foram devolvidas ao acolhimento.

Manuela, Sabrina e Graça Goetz
Manuela, Sabrina e Graça Goetz Foto: Débora Ertel/GES-Especial

Emoção de receber a primeira filha

Uma nova tentativa foi realizada e, desta vez, duas foram devolvidas. Mais uma vez tentou-se uma família para as duas meninas, mas Manuela retornou para o lar. Ela ainda passou por uma quarta família, que também não a quis.

"Isso era muito ruim. Porque quando começava a chamar de pai e mãe voltava para o lar das tias", desabafa.

No entanto, ela alimentava uma esperança no seu coração, de que a sua verdadeira família viria do Rio Grande do Sul, pois as crianças que viviam no lar acreditavam que os pais moravam todos aqui. "Porque quem era adotado por gaúcho não voltava nunca mais", explica. Foi no Dia das Mães de 2018, por meio de uma videochamada, que o casal conversou pela primeira vez com Manuela. "Na segunda chamada ela já me disse: 'Oi, mãe'", recorda Graça, emocionada. Em 18 de setembro eles foram a São Paulo buscar a menina. "Foi o maior presente que eu ganhei", diz emocionada.

Para já ir entrosando a família, eles decidiram viajar de carro e, na volta, passaram pelas praias de Santa Catarina, com direito a tomar banho de mar e passeio no Parque do Beto Carrero. "Eu só ainda não me acostumei com o frio e o chimarrão. Mas nossa, hoje eu sou muito feliz", declara a jovem.

Graça conta que o convívio foi sendo construído aos poucos, assim como o afeto e os limites. Somente quatro meses depois de Manuela chegar, Fernando recebeu o primeiro beijo da filha, quando ela foi levada para a escola. "Ele me mandou um áudio comemorando: 'Ela me beijou, ela me beijou!'", conta a mãe, entre sorrisos. (Fernando não participou da entrevista porque estava trabalhando.)

Família Goetz: Sabrina, Manuela, Graça e Fernando
Família Goetz: Sabrina, Manuela, Graça e Fernando Foto: Arquivo pessoal

Chegada de Sabrina

Dois anos depois, em plena pandemia, o telefone da família recebeu um chamado especial mais uma vez. Era sobre Sabrina, que morava em Erechim, com 10 anos e que não falava praticamente, porque sua mãe biológica era surda e muda. Os filhos foram destituídos da família por situações diversas de maus tratos e abandono.

Assim a nova filha chegou à família Goetz e fez com que Graça tomasse uma decisão importante. "Eu senti a necessidade de fazer Pedagogia para ajudar a alfabetizar minha filha", resume.

Assim, ela saiu do escritório contábil onde trabalhava havia 12 anos, passou a atuar em meio turno em uma escola como professora e no outro turno, em outro estabelecimento, continuou exercendo a escrita fiscal.

Sabrina é muito tímida e ainda fala pouco, mas cada conquista é comemorada pela família. Já aprendeu a andar de bicicleta e sabe construir frases curtas, além de ter alegria em escrever o nome de todos os membros da família em um quadro, seu brinquedo favorito na casa. "Eu quero ser professora", adianta.

A família conta que precisou ser firme em relação ao desenvolvimento da filha mais nova. "Se todos conseguem, você consegue também. Não vamos desistir", e assim vai indo a rotina, entre exercícios extras de escrita, leitura e muita conversa para praticar a linguagem.

Hoje, as irmãs participam do grupo de jovens da Igreja Católica Objetivo Novo de Apostolado (Onda) e Sabrina já toca violão. A família mantém uma rotina de espiritualidade, o que o casal considera fundamental no ensino de valores às filhas. Além disso, o apoio dos avós é destacado pela mãe, que acolheram as netas sem distinções e contribuem no cuidado enquanto os pais estão no trabalho.

Dia do Encontro já formou famílias

Uma das atividades de promoção e estímulo à adoção tardia realizada no Rio Grande é o Dia do Encontro, organizado pela Corregedoria-Geral da Justiça e a Coordenadoria da Infância e Juventude.

O evento não é aberto ao público, nem à imprensa, e promove a aproximação de candidatos habilitados com crianças fora do perfil desejado por eles: são grupos de irmãos, adolescentes e crianças com problemas de saúde. "Todos que estarão lá foram consultados sobre o interesse de querer participar. Não é um feirão! O que queremos é auxiliar e dar voz para eles", diz. "Falamos para eles: tu pode não encontrar ninguém. Tudo bem para ti?", conclui Marleci, explicando que quando a criança está no acolhimento também cria expectativa.

Sobre a participação dos pretendentes, o Judiciário abre um número limitado de vagas (entre 80 e 100), de acordo com a quantidade de crianças e adolescentes que se dispuseram a participar. "Neste ano, todas foram preenchidas bem rapidinho", comenta ela sobre o encontro marcado para 9 de julho.

Os candidatos participam de uma reunião de preparação para o dia do evento, que ocorre em uma tarde. É um momento de descontração, de brincadeiras, onde todos circulam entre si para se conhecerem. Caso surja o interesse de alguma das pessoas que desejam ser pais adotivos, na semana seguinte é feito contato com a Justiça para solicitar que seja realizada uma aproximação.

Em julho, será realizada a quarta edição do Dia do Encontro. Nos três eventos anteriores, 13 adoções surgiram a partir deste primeiro contato. Ou seja, casais que não pensavam em adotar irmãos, adolescentes ou crianças doentes mudaram de ideia quando tiveram contato pessoal com aqueles que julgavam não poderem fazer parte de suas famílias.

Objetivo não é ter números

De acordo com Marleci, não existe burocracia no processo de adoção, mas falta de informação. "Se eu me habilito, eu tenho que acompanhar o meu processo", diz. A cada três anos são realizadas reavaliações do perfil do candidato, a fim de verificar se permanece o interesse e se houve mudanças. Além disso, Marleci explica que os pretendentes têm acesso aos seus dados no Cadastro Nacional de Adoção. "Ele pode consultar e se tiver erros, pode pedir ao Judiciário para alterar", informa.

A assistente social deixa claro que o objetivo do Judiciário não são números. "Estamos buscando famílias para essa criança e adolescente, que seja aceito e amado", salienta.

Por isso, explica, quando há mudança de perfil do candidato à adoção, a pessoa passa novamente por uma avaliação, pois é preciso saber a motivação. "Não é chegar no balcão do Judiciário e pedir para mudar. Se não fizer uma nova avaliação, vai dar tudo errado", resume.

Ela destaca que não se deve ignorar as questões de família que o filho adotivo já teve e, no momento em que chegar ao novo lar, jamais fazer comparações, em especial, com filhos biológicos. Segundo ela, a ansiedade vai permear o início desta relação e o auxílio de um serviço terapêutico é importante para elaborar sentimentos de aceitação, negação e pertencimento, entre outros. A assistente social reconhece que ainda faltam políticas públicas satisfatórias neste ponto, pois a demanda é grande e os serviços são poucos.

Apesar de todo o cuidado que a equipe tem para que as novas famílias deem certo, não se tem garantias que vai dar certo. "Não temos uma bola de cristal", diz. Apesar disso, ao longo de 20 anos trabalhando nesta causa, Marleci garante que os casos de sucesso são muitos, superiores às experiências negativas.

"São histórias surpreendentes e a gente fica muito feliz com o número de adoções bem resolvidas", finaliza.

Adoção não é ato de caridade

Graça conta que a decisão do casal de escolher ter filhos por meio da adoção ainda não é compreendida da maneira correta por muitos.

"Se adotar quatro crianças, a sociedade diz: nossa, que coisa linda! Agora se a família tem quatro filhos biológicos: que loucura!". É assim que a mãe descreve o que já ouviu, seja direto ou nas entrelinhas, de quem a vê com suas filhas, porque muitos entendem a adoção como ato de caridade, no sentido de ajuda humanitária.

A assistente social Marleci Hoffmeister, da Coordenadoria da Infância e Juventude do Estado, chefiada pelo juiz-corregedor Luís Antônio de Abreu Johnson, relata que, infelizmente, essa ideia ainda é muito presente. "Tem gente que pensa: 'Me aposentei e agora vou poder fazer o bem para alguém'. Esse envolvimento de caridade com a adoção é que a gente quer desmistificar", destaca.

Marleci salienta que crianças em acolhimento não querem gesto de caridade, eles querem uma família. "Adoção é vínculo, é emoção, é dedicação. É considerar aquela criança como filho", ensina.

Filho não é devolvido, é abandonado

“Quando tem adoção, se tem um filho. Então o que acontece quando não se quer mais é um abandono”, enfatiza a assistente social. Marleci salienta que não existe diferença entre o abandono de um filho adotivo e um biológico. A devolução, que também é um processo doloroso, ocorre quando o processo de adoção está em tramitação. De acordo com ela, o Judiciário está monitorando essas situações a fim de ter dados estatísticos para desenvolver estratégias.

Para Graça, quando uma criança é devolvida o problema não está no filho, mas nos pais que não estão prontos para a missão. Ela conta que era nítido em Sabrina o medo de ser devolvida mais uma vez. “A gente conversava muito sobre isso”, garante.

No processo de habilitação tem se trabalhado da avaliação psicológica à social. “O profissional que assiste ao candidato deixa claro que adoção não é um conto de fadas”, ressalta. Conforme Marleci, as expectativas são muito trabalhadas com os homens e mulheres que esperam por um filho. “Alguns já tem o quarto pronto da criança. A chegada pode demorar e isso gera angústia”, comenta.

Para ela, quando se é mãe e pai de adolescente é preciso amar de uma forma mais firme, ensinar a autoridade. “Não tem plano B quando se tem filho. Assim como não tem plano B no casamento. É pra sempre”, diz, taxativa. Ela defende que a adoção é um processo natural. “Quando se engravida, não se sabe se virá um, dois ou três, também nem imagina o sexo”, compara.

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