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Cartas quase bicentenárias contam a saga de imigrantes que colonizaram a região

Narrativas que são desvendadas ajudam a entender dramas enfrentados antes, durante e após as viagens

Reportagem: Moacir Fritzen

Numa época em que não havia Internet, nem telefonia, como se comunicar com amigos e familiares que ficaram em outro continente? Como narrar as dificuldades enfrentadas numa viagem longa e cheia de percalços, as belezas naturais encontradas em solo brasileiro e o início do estabelecimento de uma nova morada? O jeito era escrever.

E foi isso que parte dos imigrantes alemães que colonizaram a região fez, embora os registros conhecidos não sejam tantos, pois cada família enfrentava um desafio imediato naqueles tempos: sobreviver. Muitas dessas narrativas permaneceram décadas, ultrapassaram séculos ou ainda estão guardadas em baús, gavetas, prateleiras e afins, à espera de que alguém as descubra. Sótãos, porões e outros cômodos de casarios históricos ainda podem guardar relíquias por enquanto desconhecidas.

Cartas de imigrantes contam saga de colonizadores da região
Cartas de imigrantes contam saga de colonizadores da região Foto: GES
Graças ao advento da tecnologia e do interesse de descendentes, pesquisadores e especialistas no tema, muitas dessas histórias estão vindo à tona. Cada linha escrita revela situações enfrentadas pelas pessoas que tiveram a coragem de cruzar o Atlântico para desbravar um outro continente. Infortúnios aconteceram e vidas sucumbiram durante a jornada, enquanto que aqui depois encontraram uma nova morada, com uma realidade diferente daquela que os europeus estavam acostumados. Novos desafios surgiram.
Também há relatos positivos, da superação, de nascimentos, de matrimônios, do sucesso obtido com as primeiras lavouras, as construções das habitações, as criações de animais e o encanto com a natureza em terras brasileiras. Soma-se a isso os pedidos para saber a situação das amadas e dos amados que a distância não permitia mais rever.

São textos que impressionam tanto leigos como estudiosos. Entre os casos dramáticos que ficaram impressos em páginas está o dos passageiros do navio Carolina. O historiador Carlos Henrique Hunsche - falecido em 1986 - encontrou a carta escrita e assinada por imigrantes em 4 de janeiro de 1826 que estava no acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Ele publicou a história em seu livro intitulado O ano de 1826 da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul. O autor se referiu ao Carolina como "o costeiro que foi rondado pela fome e pela morte". O capitão da embarcação deixou de alimentar os imigrantes para vender os mantimentos pelo dobro do preço em Porto Alegre, onde eram comprados suprimentos para as tropas que guerreavam contra argentinos. Famintas e doentes, morreram cerca de 20 pessoas.

Entre as vítimas estava Susana Margaretha Dopp Loré, que teve a Lagoa dos Patos como seu cemitério. Poucos meses depois, morreu já em terra seu filho caçula, Karl Joseph Loré, de apenas 1 aninho, também em decorrência daquela situação de penúria. "Ela recém havia tido bebê quando saíram de lá (da Europa). Os que sobraram da família chegaram a São Leopoldo em 15 de janeiro de 1826. Então, cinco ou seis dias antes, ela foi jogada na Lagoa dos Patos", conta a pesquisadora, professora e escritora Solange Hamester Johann, que reside em Santa Maria do Herval e tem forte vínculo com esse episódio, pois seu marido Sérgio Johann é descendente dos Loré. "O bebê morreu em 29 de abril de 1826, pouco tempo depois da chegada", destaca.

Ao longo de muitos anos de investigações e pesquisas, Solange notou que morriam mais mulheres do que homens durante as viagens da Europa ao Brasil. A partir dos seus estudos, ela chegou a uma hipótese que pode explicar essa mortalidade. "Acredito que muitas delas, diante da escassez de comida, davam a suas porções aos filhos e filhas", estima Solange.

Ouça trechos de cartas de imigrantes

 

Sobreviventes da família Loré superam as perdas

Mesmo com as mortes de Susana e do pequeno Karl, os sobreviventes da família Loré encontraram forças para vencer os desafios numa terra desconhecida para eles. Era lidar com a saudade da antiga Heimat (a Pátria natal), absorver as perdas e se estabelecer na nova Heimat. E conseguiram sobrepujar, tanto que vieram outras gerações. O drama dos que morreram deve ter servido de inspiração. "Depois, as irmãs Leopoldina Loré e Guilhermina Loré casaram com Georg Johann e Peter Johann, que também eram irmãos. Ali está o vínculo do meu marido Sérgio", explica Solange.

"Um verdadeiro zoom na vida de um indivíduo"

Na opinião do pesquisador Paulo Franzen, de São José do Hortêncio, "esses escritos dos imigrantes são uma das fontes mais relevantes para que se consiga formar uma imagem mental de como era o contexto e a situação da época, sob a perspectiva de quem saía da Europa e vinha se estabelecer na América. Um verdadeiro zoom na vida de um indivíduo, ou grupinho, para contrastar com a generalidade que prevalece nos livros de História. Suas motivações, seus valores, o que consideravam importante ou não, o que buscavam e quais as suas intenções. Por vezes também fornecem pistas valiosas para quem procura desvendar a história de algum antepassado, descobrir seus passos e suas relações".

Ele é descendente do autor de outra carta escrita por um imigrante no ano de 1832. Nela, seu antepassado descreve sobre os primeiros períodos no Brasil, os cultivos, a criação de animais e a proximidade com outros conhecidos.

"Quanto à essa carta de Mathias Franzen, não lembro quem primeiro me falou a respeito, possivelmente algum pesquisador de genealogia que encontrei na Cúria de Porto Alegre. Foi lá mesmo que vi a carta pela primeira vez, num anuário de 1922. Naturalmente me interessou, não só por ser descendente, mas também por estar intensamente relacionado com a história de São José do Hortêncio. Pessoalmente, é emocionante conhecer detalhes adicionais sobre a vida de um antepassado do qual, não fosse pela carta, conheceria muito pouco. Implícito no texto está o retrato do homem da época, sua devoção a valores morais e religiosos, o estado de espírito que levou à sociedade moderna", destaca Paulo Franzen.

Historiador ressalta a importância dos registros

Segundo o historiador e escritor Martin Dreher, cartas são um importante gênero e também uma importante fonte de pesquisa histórica e jornalística. No entanto, ele observa que é necessário tomar cuidado ao analisar o conteúdo. "Nós temos casos de fazendeiros de São Paulo que contrataram imigrantes e depois os forçavam a escrever cartas contando mentiras, dizendo o quanto estavam bem e quanto dinheiro já tinham", destaca.

"O pastor Wilhelm Rotermund que publicou cartas aqui no Rio Grande do Sul fala do caso de casal que foge da Alemanha porque os pais eram contrários a esse casamento e depois mandam cartas para os pais contando maravilhas sobre a sua situação, fazendo inclusive desenhos da casinha na qual estariam morando", cita Dreher.

O historiador ainda recorda de outra carta de um imigrante. "Temos relatos impressionantes já também da segunda leva em que um imigrante, que depois permanece no Rio de Janeiro, conta como sua esposa deu à luz e como o leite empedrou, como se dizia na época. A criança não pôde ser amamentada e acabou morrendo de inanição porque não havia outro alimento para esse bebê", conta.

Dreher também diz que existem narrativas positivas, como a feita pelo seu próprio avô, após 1912, endereçada à sua bisavó, na Alemanha, contando da saudade que sentia em relação aos familiares, mas também a alegria de poder estar no Brasil porque aqui ele encontrou trabalho. "Ele era ourives e na Alemanha não encontrava mais trabalho nos anos de depressão posteriores à Primeira Guerra Mundial", explica.

História familiar

Dreher destaca a importância do escrito pelo seu avô. "A partir desta carta, eu consigo ver quem mais da Alemanha vivia por volta de 1912 e anos seguintes, bem como em Montenegro. Ele (o avô) conta histórias da família. São registros importantes para a pesquisa genealógica e para a história familiar", reforça. Ele cita ainda outro registro feito pelo professor Peter Paul Müller, que atuou em Dois Irmãos. "Ele relata que além de dar aulas, ele tinha a propriedade onde criava vacas, bois, porcos e galinhas. Conta da produção que estavam colhendo e da alegria de que o inverno aqui não era tão rigoroso", diz. Esses relatos ajudam a entender o modo de vida. 

Achado que mudou o rumo de pesquisa

A carta do imigrante alemão Johannes Weber, professor e pastor auxiliar em Dois Irmãos, passageiro e testemunha ocular da catástrofe do navio Helena e Maria no Canal da Mancha, está entre as descobertas que mudaram o rumo de uma pesquisa e do que se sabia até então.

Este veleiro holandês, com 340 imigrantes alemães, foi apanhado por um furacão no Canal da Mancha e, na iminência do naufrágio e da morte certa dos passageiros, foi salvo e rebocado por um navio para o porto de Falmouth, na Inglaterra. De lá, onde esses alemães, que haviam perdido tudo (seus pertences foram parar no mar, permaneceram com as roupas que vestiam e ainda enfrentaram dias congelantes à deriva antes de serem resgatados), ficaram retidos por quase um ano, Weber escreveu uma carta para sua mãe e parentes na Alemanha.

A mãe, que mais tarde emigrou junto com outro filho para os Estados Unidos, preservou a carta numa biblioteca do Estado de Ohio, onde uma cópia foi encontrada por um descendente "Weawer", que a entregou a um professor, e este, por sua vez, enviou-a ao professor e pesquisador Friedrich Hüttenberger, na Alemanha, para que a escrita gótica fosse decifrada.

"É impressionante também como esse registro apareceu lá nos Estados Unidos", comenta o coautor do livro A lenda do veleiro Cäcilia, Décio Aloisio Schauren, junto com o próprio Hüttenberger. A obra não teria sido possível de ser realizada sem a descoberta deste relato feito por Weber.

"A descoberta desta carta de Johannes Weber foi a chave para que se pudesse elucidar a história daquele grupo de colonos alemães que foram pioneiros de Dois Irmãos, Ivoti, São José do Hortêncio e Lomba Grande. Como a memória histórica desse grupo não pode ser preservada, devido às muitas perdas, sobrou apenas a tradição oral, em grande parte suplantada pela ficção no decorrer de quase 200 anos. A carta de Weber contém elementos que permitiram, tanto do ponto de vista factual quanto temporal, reconstruir a viagem daquele grupo de imigrantes: a origem daqueles alemães, sua viagem pela Holanda, o nome do precário navio e sua partida do porto de Texel, as datas dos acontecimentos, os dias exatos da tragédia no Canal da Mancha e da salvação quase que milagrosa", destaca.

A carta forneceu aos pesquisadores, entre eles, o holandês Onno Boonstra, o alemão Hüttenberger e o gaúcho Schauren, informações que permitiram estabelecer o exato roteiro da viagem e, a partir daí, centenas de documentos como as listas dos imigrantes com e sem passaporte, as listas de caução para a entrada na Holanda, registros de nascimentos e óbitos na Inglaterra.

Com estes dados em mãos e comparando-os com as listas do navio costeiro Florinda (que os trouxe para o Sul) e os registros de chegada dos imigrantes em São Leopoldo (elaboradas por Hillebrand), Hüttenberger reconstruiu a lista dos passageiros do navio Helena e Maria e do navio James Laing, que os trouxe para o Brasil.

Listas de passageiros

Comparando as listas dos imigrantes chegados a São Leopoldo com as listas dos diversos navios em que chegaram, Schauren percebeu que o navio Cäcilia, de fato, nunca existiu, pois não sobraram imigrantes que pudessem ter vindo no lendário veleiro.

"Ficou comprovado que todas as famílias colocadas na conta do navio Cäcilia vieram com outros navios. Este nome não consta nas listas de navios que partiram dos portos europeus com imigrantes alemães", afirma. Mais do que isto, com base nas informações dos jornais da época e documentos inéditos descobertos na Europa, Schauren contestou boa parte da história lendária, conhecida até então.

"Assim, a redescoberta da carta de Johannes Weber permitiu contar a história real daquele grupo de colonos e reescrever um importante capítulo da história da imigração alemã no Brasil, com o lançamento pelo GenealogiaRS do livro A lenda do veleiro Cäcilia", destaca Schauren.

Estudo da linguagem

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Cléo Altenhofen é coautor do livro Cartas de imigrantes de fala alemã: Pontes de papel dos hunsriqueanos no Brasil, junto com Joachim Steffen e Harald Thun. Em entrevista, ele conta sobre as experiências a partir deste trabalho.

Como surgiu a ideia de fazer um livro sobre cartas de imigrantes e seus descendentes?

Cléo
Cléo Foto: Divulgação/Ufrgs
Cléo Altenhofen - O interesse central de nossas pesquisas, na área de sociolinguística e dialetologia do alemão, é naturalmente a língua. E uma dimensão de seu estudo é especialmente instigante: a história da língua alemã e de suas variedades ao longo de quase 200 anos no Brasil. Como, porém, não temos gravações do alemão falado por esses imigrantes originais, o único dado que nos permite reconstruir essa língua ao longo do tempo, são as cartas escritas por eles, na comunicação com pais, irmãos, tios, cunhados.

Essas cartas privadas, como são datadas, permitem ordenar cronologicamente os dados da língua. Não são quaisquer cartas: para o estudo linguístico, interessam sobretudo cartas de "pessoas simples", para explicar melhor, porque, embora escrevam na norma escrita do alemão, ou até onde conseguem, essas cartas de estilo mais espontâneo deixam escapar informações valiosas sobre o que se fala no dia a dia, geralmente uma variante dialetal ou uma palavra do português, ou que é mais corrente no período.

Isso se vê, por exemplo, em palavras como Profission e Doktor, em lugar de Beruf ou Arzt, ou palavras como Milje ou Milgen, em lugar de Mais ou mesmo um arcaísmo como Welschkorn. Ou ainda, também variantes como Verlange, para designar 'saudade', em lugar da forma do alemão Sehnsucht. O livro é, portanto, uma forma de apresentar esse acervo de conhecimento, sob uma perspectiva de interesse mais linguístico. Cada carta aparece fielmente transcrita, conforme a grafia original, com seus erros, rasuras etc.

E, para auxiliar o leitor na percepção de formas e fatos da língua, cada carta vem comentada em breves resumos e observações em notas de rodapé.

Como foi essa coleta do material?

Altenhofen - Grande parte do acervo foi levantada em viagens de pesquisa para o projeto Atlas Linguístico-Contatual das Minorias Alemãs na Bacia do Prata (Alma), em andamento no Instituto de Letras da Ufrgs. Ao lado dos levantamentos do alemão falado, nas 44 localidades do projeto, aproveitamos as viagens para perguntar por cartas antigas guardadas pelas famílias ou em algum arquivo local e, com o devido consentimento, então tirávamos uma foto. Outra parte foram generosas contribuições de parceiros de pesquisa e outros acervos que nos cederam uma cópia. Com isso, reunimos um acervo que compõe o que chamamos de "ALMAHistórico".

Há, contudo, um trabalho imenso que se segue: cada foto é meramente a foto de um texto escrito em Sütterlin ou Kurrentschrift, que aqui as pessoas chamam de escrita gótica. Mais tarde, é claro, vão surgir muitas cartas escritas na escrita latina, e também de forma crescente em português.

É preciso, então, etiquetar, isto é, nomear o arquivo, identificando quem, onde, quando e para quem, em qual língua (alemão ou português) escreveu a carta. Com isso, determinada carta pode ser, mais tarde, mais facilmente "encontrável" no banco de dados e ordenada cronologicamente, nos diferentes períodos em que o livro publicado divide a história da língua.

Feito isso, passa-se à transliteração fiel e minuciosa do facsimile original para a versão transcrita, como aparece no livro. Também a numeração das linhas - a reconstrução de trechos apagados ou onde há um buraco no papel - precisam ser respeitadas.

Às vezes, na mesma carta, a letra muda, porque outro membro da família ou pessoa próxima continuou o texto. Outras vezes, sequer sabemos se a carta é escrita pelo mesmo autor ou ditada para alguém que melhor domina a escrita. Como se vê, não apenas a forma da língua escrita é registrada fielmente, mas também as informações sobre o processo de escrita e leitura da carta são, para a pesquisa linguística, importantes.

Algumas dessas pistas são mais nítidas, como por exemplo quando alguém escreve no primeiro dia do ano, em pleno verão, ou quando alguém aproveita o tio que vai "descer para Estrela", para levar uma carta, ou ainda quando alguém reclama não ter recebido resposta a uma carta anterior. São situações comunicativas que revelam muitas facetas não só do uso da língua e de sua vitalidade, mas também do papel que assume nas migrações e nas relações familiares.

Das cartas que você leu, tem alguma que te chamou mais a atenção?

Altenhofen - Não posso dizer que tenha uma carta específica que me tenha chamado mais atenção. Isso depende do modo como lemos as cartas e da relação de quem as lê com as pessoas e o contexto envolvidos. Ler uma carta de um bisavô é parte da memória e, como tal, parte de nós. Senão, como chegamos aqui e em que condições? Não por acaso famílias como a da minha avó Margareta Dilly guardaram por anos uma carta em que um irmão rememorava a experiência da Guerra do Paraguai, para a qual foi recrutado como "voluntário da Pátria" com outro irmão, este ainda menor e que, portanto, foi indevidamente recrutado, causando muita dor à família. Sequer era uma carta, era um diário escrito em rimas, que minha avó leu tantas vezes que acabou decorando linha por linha. Essa carta que não era bem uma carta foi para mim talvez a mais significativa, tanto que escrevi um artigo a respeito. Além disso, foi uma carta que não apenas podia ler, mas vivenciar no processo de leitura coletiva com os meus tios.

Olhando, por outro lado, para o acervo de cartas do projeto, meu interesse é sobretudo linguístico. Eu vasculho cada uma das cartas muito mais em busca de informações sobre a língua falada, da qual a língua escrita dá pistas. Por exemplo, quando alguém, em 1925, escreve que teve "influenza", ou quando leio que, em 1856, um saco de "Mülgen" 'milho' custa "9 Mühlreh" 'mil-réis'. Ou ainda quando alguém, em 1922, fecha a carta "mit einen abraço und zwei Küsse".

O que isso significa na história da língua? Exemplos como esses há aos montes, mas precisam ser analisados, no seu contexto histórico, como pistas que a língua dá sobre o contato entre a cultura imigrante, trazida de fora, e o novo meio, com toda a sua diversidade e desafios que coloca.

E qual a importância que você dá às cartas?

Altenhofen - Para mim, como disse, as cartas manuscritas representam uma fonte importantíssima não apenas para os historiadores, mas também para quem estuda a história da língua alemã no Brasil. Na história, encontramos explicações para a descrição da língua, mas também a língua, a forma de escrever ou de pronunciar, e o que é selecionado para designar algo ou se referir a algo revelam muito sobre a história no sentido amplo, da vida real das pessoas nas suas colônias e picadas e o modo como vivem e veem o mundo.

Em outras palavras, na análise das cartas privadas é importante não apenas o que se diz, mas também como se diz. Esse "como", contudo, varia não só de uma localidade a outra e de um escrevente a outro (seja ele homem, mulher, imigrante ou descendente), mas também ao longo do tempo. Por exemplo, observamos maior ou menor proficiência, maior ou menor presença de português, mais ou menos indícios da fala dialetal, etc. Identificar tendências, para que lado vão as competências e práticas linguísticas dos escreventes e, através deles, dos falantes que eles também são, exige uma metodologia adequada.

Descoberta no museu em São Leopoldo

Como parte de um trabalho voluntário, Ingrid Marxen decidiu abrir algumas caixas que estavam guardadas nas prateleiras no Museu Histórico Visconde de São Leopoldo. Grande parte do acervo foi doado pela família Rotermund. "Foi então que me deparei com cartas. E uma delas chamou a minha atenção porque narra uma história muito emocionante, que me tocou de verdade", conta Ingrid.


Apesar do texto não ser do século 19, a narrativa impressiona pela situação de vida precária enfrentada por uma família que supostamente vivia em Cruz Machado-PR, ou cercanias, na década de 1950. É datada de 10 de outubro de 1955 e no alto da primeira folha consta uma pista sobre a localização: Rio de Areia. O autor se identificou no final apenas como G. C. Schmidt. Logo no início, é citado o provável destinatário: Theo Kleine, professor com atuação em instituições leopoldenses.

Então, o leitor pode se questionar: "Como um relato de um morador paranaense foi parar no acervo do Museu Visconde de São Leopoldo?". A possível resposta pode ser encontrada no próprio texto, já que o autor cita também Friedrich Strothmann e pergunta se teve notícias dele, que foi seu professor em Blumenau. Strothmann devia ser um conhecido em comum.

A narrativa de Schmidt é um agradecimento pelo atendimento de um pedido e o envio de uma caixa que continha roupas para ele e seus familiares.

O relato do autor é bastante rico em detalhes sobre a situação em que ele se encontrava naquele momento, já sexagenário e após enfrentar sucessivos problemas.

Em 1950, uma peste fez 32 porcos morrerem. Cerca de dois anos depois, Schmidt sofreu com uma intoxicação no sangue ao se ferir na perna e precisar ficar oito meses em recuperação. "Jetzt ist der Körper krank - Agora o corpo está doente", cita, em trecho.

Depois, a esposa precisou ser operada e com isso o casal precisou se desfazer da última vaca. Ainda ficaram dívidas, conforme conta Schmidt. O casal criava sete filhos. Num tom de tristeza, ele escreve que está com 62 anos e que possivelmente não poderia mais ficar muito tempo com suas crianças. Da terra, devido às limitações a família conseguia produzir o suficiente para sobreviver naquelas condições, mas não havia praticamente excedente para comercializar.

Outro detalhe interessante citado por Schmidt na carta é que nevou. A neve não derreteu por 13 dias. E como o remetente agradecia pela entrega de uma encomenda com roupas, reforça o entendimento de quanto aqueles artigos eram urgentes.

Num dos parágrafos, o autor revela que um dos meninos, chamado David, de dois anos, apertou as duas calças que recebeu junto ao seu peito, tamanha era a sua alegria. Ao lado, estava o irmão Selmar, de três anos e meio, que havia corrido com os seus presentes para debaixo de uma árvore.

"Todo o relato tem forte dose de emoção e ilustra como era difícil a situação daquela família", finaliza Ingrid.

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