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Notícias | Região BUGIO

O autêntico ritmo gaúcho ganha homenagem em meio à polêmica

Gênero musical que se inspira em som emitido por primata é gaúcho. Só não se sabe em qual cidade ele nasceu

Por Ermilo Drews
Publicado em: 27.08.2022 às 10:00 Última atualização: 30.08.2022 às 20:45

Único ritmo autenticamente gaúcho, o bugio ganhou este nome numa referência ao primata comum por estes pagos. De gogó desenvolvido, ele emite um som potente, parecido com um ronco forte. Os outros ritmos que tocam em fandangos e bailes de CTGs Estado afora são todos importados. Chamamé é argentino. A vaneira é cubana; o chote, alemão. E por aí vai.

Assim como o ritmo, Festival Ronco do Bugio se tornou patrimônio cultural imaterial
Assim como o ritmo, Festival Ronco do Bugio se tornou patrimônio cultural imaterial Foto: Prefeitura de São Francisco de Paula/Divulgação
Mas se tradicionalistas não discutem que o bugio é gaúcho, a origem exata do ritmo inspirado no macaco provoca uma disputa de fazer inveja ao entrevero entre chimangos e maragatos. E quis o destino que duas cidades com nome de santos, um deles protetor dos animais, duelassem pela paternidade do bugio, gênero musical.

Mais de 500 quilômetros separam São Francisco de Paula - área de cobertura do Grupo Sinos -, no Campos de Cima da Serra, de São Francisco de Assis, nas Missões. Mas uma polêmica aproxima os "São Chicos", além do nome. Há décadas tradicionalistas destes dois rincões brigam para definir quem é o pai da criança, digo, do bugio.


O mais recente capítulo desta saga aconteceu neste mês, quando São Francisco de Paula tornou o bugio patrimônio cultural imaterial da cidade, ato que a outra São Chico já havia feito. Ambos municípios até tentaram uma trégua em fevereiro deste ano, quando comitivas das duas cidades acenaram com acordo de paz na busca por tornar o ritmo patrimônio imaterial do Estado e da nação, a exemplo do que aconteceu com o forró. Mas desavenças não fizeram a ideia avançar, pelo menos por enquanto.

"A origem do ritmo é discutível e interminável. São Francisco de Paula advoga que o ritmo foi criado no distrito do Juá pelas mãos do gaiteiro Virgílio Leitão. Assis defende que tal criação foi em sua terra através do gaiteiro Neneca Gomes", contextualiza Léo de Souza Ribeiro, músico, poeta e historiador nascido na cidade do Campos de Cima da Serra.

O historiador lembra que Paixão Côrtes colocou em dúvida as versões. O pesquisador e folclorista considerava perigoso determinar o local de nascimento do gênero musical. "Ele dizia que, por estes gaiteiros tocarem em gaitas de botão, as chamadas voz trocada, pois abrem num tom e fecham em outro, não eram apropriadas para fazer o jogo de foles exigido para a execução do bugio. O jogo de foles é o que imita o ronco do bugio. Paixão defendia que o bugio só poderia ser executado com gaita pianada", detalha.

Primeira gravação

Mas se a paternidade é inconclusiva, quem apresentou o gênero musical ao "mundo" tem nome e sobrenome. "Se existem dúvidas quanto à origem do ritmo, não há discussões sobre o primeiro bugio gravado", atesta Léo. Quem garantiu o feito foram os Irmãos Bertussi, que gravaram Casamento da Doralice em 1956. Nascidos em São Jorge da Mulada, localidade então pertencente a São Chico de Paula, Adelar e Honeyde dedicaram 70 anos à música gaúcha.

Léo acredita que o reconhecimento nacional ao ritmo é possível. "Assim como foram reconhecidos diversos rimos nordestinos, o nosso bugio pode alcançar tal intento. Mas isto é um passo mais largo. Precisa de união de todos, entre eles os São Chicos, e da boa vontade dos políticos. O tango passou pelos mesmos problemas e hoje é a identidade musical da Argentina."

'O bugio nasceu de uma soma de fatores'

Acordeonista, pecuarista e presidente do Conselho Municipal de Cultura de São Francisco de Paula, Israel Da Sóis pesquisou por dez anos a origem do ritmo e pretende lançar livro a respeito com quase 300 páginas em outubro.

Ele corrobora as versões que ganharam vozes ao longo das décadas, destacando que a divisão se fortaleceu por meio de dois renomados tradicionalistas. "O Salvador Lanberty, que chegou a escrever livro a respeito, defendeu que nasceu em São Chico de Assis. O Honeyde Bertussi respondia que era em São Francisco de Paula. Isso provocou uma divisão maior que de chimangos e maragatos", brinca.

No entanto, para Da Sóis o surgimento do gênero musical fez parte de um caldo cultural que pertence ao folclore gaúcho, por isso mesmo considera um erro determinar uma origem.

O acordeonista cita que a batida no solo produzida por chocalho de taquara de indígenas teria sido o primeiro compasso do bugio. Depois, tropeiros imitavam o som do primata em bailes em prostíbulos, o que popularizou a vocalização. Mais tarde, recebeu as influências de instrumentos trazidos pelos próprios tropeiros. A gaita foi incorporada com a chegada dos imigrantes italianos.

"Ninguém é dono da verdade. O bugio nasceu de uma soma de fatores. Fato é que se não houvesse o macaco, não haveria o gênero musical", defende. "O importante é que o bugio é autêntico do Rio Grande do Sul. Uma relíquia gaúcha. Tem a mesma importância do chimarrão, do churrasco, do cavalo."

Pela preservação da cultura e do primata

Os projetos de lei aprovados pela Câmara de Vereadores de São Francisco de Paula tornam patrimônio cultural imaterial não só o ritmo, mas o Festival Ronco do Bugio, que acontece desde 1986. Tendo coordenado oito vezes o evento, sendo jurado em 14 ocasiões e concorrido outras tantas, Léo Ribeiro destaca a importância do festival para reforçar a ligação da cidade com o gênero musical.

"O festival possui características próprias em sua forma e conteúdo, pois é o único do Brasil onde apenas um ritmo é permitido, ou seja, o bugio, numa maneira de preservação do compasso oriundo de nossa querência. Na América do Sul algo similar acontece somente na Argentina, em Corrientes, berço do ritmo chamamé", compara.

Para o historiador, o reconhecimento do município é importante para proteger "em sua integralidade e autenticidade" o gênero musical, mas não só ele. "Sua preservação, indiretamente, também chama a atenção para o extermínio do primata. O desmatamento, o envenenamento das lavouras, a má-interpretação sobre transmissão de doenças, faz destes macacos uma espécie em extinção", recorda.

Reconhecimento precede retorno presencial de festival de música

A homenagem do município serrano aconteceu próximo do 29º Festival Ronco do Bugio, que começou na sexta-feira e seguirá até este sábado, quando César Oliveira e Rogério Melo e Ytamar Gomes sobem ao palco. A entrada é franca. Músicos de todo o Estado apresentarão canções originais durante os dois dias de evento, divididos entre fase local e fase geral.

O júri selecionou ao todo 23 composições inéditas com o ritmo bugio, sendo dez para compositores ou intérpretes nascidos ou moradores de São Francisco de Paula, dez composições para músicos de todo o Estado e três composições na categoria instrumental de gaita.

O festival rivaliza com outro evento do gênero. O Querência do Bugio, que ocorre em São Francisco de Assis. Só que por lá, outros ritmos também são aceitos. 

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