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Notícias | Região LOGÍSTICA CARCERÁRIA

Com casos polêmicos, novo centro para presos desafoga delegacias

Em 74 dias de funcionamento, Nugesp fez 4.235 audiências e agilizou fluxo penitenciário, mas é questionado por solturas de indiciados com cargas de droga no Vale do Sinos

Por Silvio Milani
Publicado em: 10.09.2022 às 09:00 Última atualização: 23.09.2022 às 10:11

Em funcionamento desde 28 de junho para receber todos os presos de 44 cidades da Região Metropolitana e arredores, o Núcleo de Gestão Estratégica do Sistema Prisional (Nugesp) acabou com a lotação em delegacias de polícia e, até esta sexta-feira (9), contabilizava 4.235 audiências. Nas últimas semanas, porém, ficou conhecido por solturas polêmicas de traficantes do Vale do Sinos. O coordenador da Área Jurisdicional do órgão, André Vorraber Costa, diz que não pode comentar decisões dos colegas juízes, por razão ética, e frisa que o novo serviço representa um avanço para o sistema carcerário e a segurança pública.

Superlotação transformava xadrez da DPPA de Novo Hamburgo em ambiente de tensão
Superlotação transformava xadrez da DPPA de Novo Hamburgo em ambiente de tensão Foto: Silvio Milani/Arquivo/GES


O Nugesp é uma estrutura montada em Porto Alegre para concentrar as audiências de custódia de uma área que produz 60% dos detentos do Estado. Depois de autuados em flagrante na delegacia, todos vão para o Núcleo, que dispõe de carceragem com 708 vagas, das quais 349 estavam ocupadas nesta sexta. O resultado é não apenas o fim do confusão nas delegacias, como também de aberrações de presos custodiados por brigadianos em viaturas.

Plantão 24 horas

Criado pelo governo do Estado, o Nugesp é uma parceria com várias instituições, entre elas o Judiciário, que tem o protagonismo. É quem decide a manutenção da prisão ou a liberdade. André é um dos seis magistrados do Núcleo, que trabalham em escala de dois por dia, para sessões que começam às 9 horas e podem avançar pela madrugada. "Diariamente, seja em feriados ou finais de semana, temos de 45 a 70 audiências de custódia. O plantão é 24 horas", salienta o coordenador.

Chefe confirma fim do caos no plantão

Acabou o caos de delegacias com presos amontoados no xadrez, jogados em todo canto, no pátio e perto de vítimas que registravam ocorrência. Quem afirma é o delegado da 1ª DP e chefe da Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) de Novo Hamburgo, Tarcísio Kaltbach. "Agora eles ficam poucas horas aqui e vão ao Nugesp", comenta o delegado. A situação havia chegado ao ponto de vizinhos não conseguirem dormir pelos gritos e batidas incessantes nas grades do xadrez da DPPA, que fica no Centro da cidade, durante a madrugada.

A

"O que a gente discute é se há a necessidade de manter a pessoa presa"

Entrevista/Juiz André Vorraber Costa

André Vorraber Costa
André Vorraber Costa Foto: Juliano Verardi DICOM TJRS

O Nugesp é serviço único no País?

André Vorraber Costa - Existem serviços semelhantes em outros Estados, como no Rio de Janeiro, mas o Nugesp é uma produção autônoma, pensada e concebida aqui no Rio Grande do Sul. É um aprimoramento muito grande do que a gente estava habituado a fazer.

Quais os presos que vão para o Núcleo?

André - Toda pessoa presa nessas 26 comarcas, por qualquer razão que seja, menos alimentos, que é feito em vara cível, ingressam aqui para audiência de custódia. A gente tem juízes especializados no assunto, com estrutura muito boa à disposição para realizar esse serviço, o que traz melhora para a prestação jurisdicional no que se refere à análise dos autos de prisão em flagrante, audiência inicial nos casos de cumprimentos de mandados de prisão.

Quantos flagrantes resultaram em solturas?

André - Foi feito levantamento. A proporção é de que, a cada dez, quatro são mantidos presos e seis são soltos.

Isso é um padrão no Judiciário gaúcho?

André - Esse percentual tem muitas variáveis. Pautar, vamos dizer assim, o êxito do serviço com base nisso não é interessante.

Esse dado é só em relação aos flagrantes?

André - Sim, porque nos outros casos não há análise sobre a soltura das pessoas.

O Nugesp não pode revogar prisões temporárias ou preventivas?

André - Essas são competência do juiz que decretou. O juiz aqui do Nugesp tem autonomia para manter a prisão ou conceder a liberdade só nos flagrantes

Então por que as prisões cautelares e recapturas vão para aí?

André - É importante dizer que o Nugesp e esse procedimento surgiram para dar cumprimento aos tratados internacionais, decisão do Supremo e resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que manda fazer as audiências de custódia. E para se criar uma rotina e estrutura capaz de atender a essa demanda de audiências de custódia, que é aquela inicial, quando a pessoa recém é presa, foi criado o Nugesp.

Como eram as audiências de custódia antes?

André - Elas aconteciam, só que eventualmente frustravam porque era muito mais difícil conduzir uma pessoa presa para diversos fóruns. Estando essas pessoas distribuídas em diversas casas prisionais, tornava a logística muito mais complexa e, às vezes, não era possível apresentar a pessoa ou era apresentada com atraso. O Nugesp resolve esse problema, porque as pessoas presas nessa área de abrangência vêm todas para cá. Temos aqui juízes plantonistas sete dias por semana, 24 horas por dia, para realizar essas audiências. Isso dá êxito na tarefa com logística muito mais adequada. Todas as instituições, como Ministério Público, Defensoria, OAB, Polícia Civil, se moldaram a isso.

O serviço acabou com a lotação de presos nas delegacias?

André - Pelas informações que recebo, acabou com essa situação não só em delegacias, como também na situação de presos tendo que ficar custodiados pela Brigada Militar em viaturas. Assim, as delegacias não têm mais essa tarefa de ficar com pessoas presas, o que não era adequado, e os policiais ficam livres para melhor desempenhar as atividades deles. Os policiais militares também podem se voltar mais para o policiamento ostensivo. Além disso, essas 26 comarcas que tinham que cuidar dos flagrantes e custódias ficam com melhores condições de tratar dos outros assuntos de suas competências.

As decisões no Nugesp são mais brandas que as das comarcas?

André - Não posso comentar decisões, por código de ética. A gente aqui age conforme a mesma legislação e fundamentos que outra comarca. O diferencial aqui é que estamos trabalhando especializados na matéria, o que nos faz ter uma visão geral das prisões da área porque vem tudo para nós. Temos oportunidade de contato presencial com 100% dos presos, o que nos dá mais elementos para decidir. Em muitos casos temos atendimento prévio de psicólogas, de assistentes sociais, o que nos dão mais informações sobre aquela pessoa. Tudo aprimora as decisões. Existe todo um sistema que ajuda o magistrado a melhor conhecer o caso. É muito importante dizer que o juiz do Nugesp não é melhor que nenhum outro. Ele simplesmente tem à disposição uma estrutura que favorece esse trabalho.

O Nugesp virou centro de polêmica por solturas recentes.

André - A manutenção da prisão e concessão da liberdade está muito associada ao caso apresentado ao magistrado. Há casos em que a lei não permite que a pessoa seja mantida presa. Por exemplo, receptação, furto simples, furto de energia. A pena não é superior a quatro anos. Então a lei não permite prisão preventiva. O delegado arbitra fiança, o preso não teve condições de pagar, chega aqui e acaba sendo concedida liberdade com outra medida cautelar.

Tivemos dois presos com 98 quilos de cocaína em Novo Hamburgo e três com 151 quilos de maconha em Campo Bom que não tiveram flagrante homologado por uma juíza, sob argumento de violência policial, e um detido com seis porções de droga em São Leopoldo que teve o flagrante homologado por outro juiz apesar de imagens de agressões que sofreu de um agente. Qual o critério?

André - Mesmo que conhecesse detalhadamente os casos, não poderia comentar. Estou proibido de fazer isso, sob pena de responder processo disciplinar. O que posso dizer é que as decisões são prolatadas com fundamento na lei, as audiências são acompanhadas pelo Ministério Público, Defensoria Pública ou advogado constituído. E, em caso de inconformidade, sempre há possibilidade de recursos para instância superior, que tende uniformizar eventuais entendimentos que sejam discrepantes, o que é normal no nosso sistema judiciário. É importante que as pessoas saibam que, mesmo que tenham sido colocados em liberdade, não quer dizer que não venham a ser processadas e condenadas.

Mas reincidentes imediatamente soltos, por lógica, voltarão a cometer crimes. Como o acusado por onda de furtos em veículos em Novo Hamburgo liberado no dia seguinte ao flagrante.

André - Compreendo, mas os casos envolvem muitas informações. Não tenho como responder, nem como comentar os casos. Todos os crimes são graves porque, se o legislador entendeu que têm relevância, que devem configurar crime, que vai receber punição, é óbvio que é uma conduta grave. O que a gente discute é se há a necessidade de manter a pessoa presa. É uma discussão que vai além. Vai de uma análise grande. Claro que é difícil se criar um padrão. Isso não existe na Justiça, porque fatos absolutamente idênticos não há, todos têm suas nuances.

Decisões controversas

Até Ministério Público pediu para soltar

Identificado em vídeos e reconhecido por várias vítimas por onda de furtos em veículos no Vale do Sinos, um hamburguense de 36 anos foi preso em flagrante com peças que recém havia arrancado de três carros em Porto Alegre na tarde de 25 de agosto. Ele foi surpreendido em São Leopoldo, quando voltava para casa, por agentes da 1ª DP de Novo Hamburgo. Estava com o Sandero dele, captado por câmeras em outros crimes na região. No dia seguinte, a juíza Priscila Palmeiro deu alvará de soltura. Desta vez, o pedido de liberdade provisória não foi feito só pela defesa do acusado. A promotora de Justiça Letícia Ilges considerou que o indiciado tinha que ser solto porque "os furtos foram cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa".

Diferentes critérios para tráfico e violência policial

No último dia 30, dois homens foram presos pela Brigada Militar com 98 quilos de cocaína, avaliada em R$ 4,9 milhões, além de armas e munições, mas acabaram soltos em poucas horas. A juíza Priscila considerou a operação ilegal sob argumento de que os brigadianos não tinham mandado de busca nem permissão para entrar na casa do traficante, no bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo.

A mesma magistrada, no dia 4 deste mês, de novo não homologou o flagrante e mandou soltar dois homens e uma mulher presos horas antes com 151 quilos de maconha em Campo Bom. O argumento foi violência policial. "Houve relato de irregularidade nos atos referentes à realização da prisão, sendo que (nome de um) foi alvejado na perna e (nome do outro) teria sido agredido por três policiais, sendo que dois deles fizeram a apresentação dos presos na Delegacia", despachou. Os brigadianos negam agressões e dizem que o disparo ocorreu porque o homem tentou fugir e colocou a mão na cintura, em local escuro, fazendo menção de estar armado.

Neste feriado da Independência, o juiz Nildo Inácio homologou o flagrante de um homem de 39 anos preso com quatro porções de maconha e duas de cocaína, no dia anterior, por policiais civis em um galpão de reciclagem em São Leopoldo. Neste caso, havia vídeo de um policial agredindo o detido já algemado. Apesar do flagrante, também foi solto.

Delegada afirma que flagrante foi legal

Responsável pelo indiciamento do trio de Campo Bom com 151 quilos de maconha, a delegada Marjani Simch, plantonista da DPPA, não concorda com a decisão do Nugesp. Ela afirma que a prisão foi legal. "Havia a materialidade, que é essa expressiva quantidade de droga, e o ferimento de um dos presos foi atestado pela médica como outra lesão, não oriunda de tiro. E, mesmo que tivesse havido violência policial, não é motivo para não fazer o flagrante. Nessa hipótese, se faz a prisão e envia o caso para a Corregedoria", diz ela, acrescentando que os três têm antecedentes criminais.

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