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Notícias | Região NO CORAÇÃO E NO PAPEL

É possível ter legalmente dois pais ou duas mães? Entenda

No Direito, isso se chama de multiparentalidade. Casos não são tão comuns, mas acontecem

Publicado em: 28.04.2023 às 07:00 Última atualização: 28.04.2023 às 08:49

O nome é algo que identifica, que faz cada pessoa única, com uma marca registrada. Já o sobrenome diz respeito à origem, à história presente na vida daquela pessoa, uma herança dos pais. A partir de 1988, com a Constituição Federal, o Estado passou a considerar a família como base da sociedade. Relações familiares passaram a permear decisões legais.

Uma delas diz respeito ao reconhecimento do Estado de que é possível ter “dois pais” ou “duas mães”, com a situação formalizada perante o Registro Civil. No Direito, isso se chama de multiparentalidade, termo utilizado para expressar a aprovação da Justiça para a existência de mais de um vínculo materno ou paterno. Com isso, todos os documentos passam a apresentar essa dupla filiação, materna ou paterna.

Casado com Luana, Luciano é legalmente pai do menino Wendel, que mantém registro do pai biológico na certidão de nascimento
Casado com Luana, Luciano é legalmente pai do menino Wendel, que mantém registro do pai biológico na certidão de nascimento Foto: Débora Ertel/GES-Especial

É isso que aconteceu com Wendel Kauã, de 11 anos, que conta com dois pais nos documentos. Aos 14 anos, Luana Sganderla, hoje com 26, engravidou do primeiro namorado e ficou sozinha para cuidar do filho. Criada pelos avós e com os pais morando em cidades diferentes, contou com a ajuda dos familiares mais próximos para dar conta de criar Wendel.

Antes da criança completar 2 anos, conheceu Luciano Sganderla, 36, que por coincidência era seu vizinho no bairro Pasqualini, em Sapucaia do Sul, região onde eles residem até hoje. Os dois começaram a namorar, decidiram morar juntos e, em dezembro de 2014, se casaram.

Wendel, assim que Luana e Luciano passaram a se relacionar, passou a receber o afeto do então padrasto. Como o pai biológico nunca foi presente da vida do menino, quem assumiu o papel de pai foi Luciano. Foi ele, ao lado de Luana, que participou das reuniões escolares, ensinou a jogar bola, garantiu o sustento da casa e ainda colocou regras de convívio. “Ele está em uma fase que gosta muito de mexer no celular. Mas a gente fica de olho, e não deixa o tempo todo”, conta Luciano.

Neste ano, Luciano conquistou diante da lei um direito que sempre considerou seu, legitimado pelo amor e a convivência. Wendel teve seu registro de nascimento alterado e, a partir de agora, conta com uma mãe e dois pais, passando a se chamar de Wendel Kauã Fagundes Machado Sganderla. “Como que ia comprovar a paternidade se ele não tinha o meu nome no papel? Agora está tudo resolvido. É legalmente meu filho, como sempre foi”, resume Luciano. 

Bem-estar e preservação de direitos

Quem auxiliou a família Sganderla neste processo foi a advogada Maria Teresa Goldschmidt, que já atua em outro caso do tipo. De acordo com ela, a multiparentalidade foi o modelo proposto aos pais porque levou em conta, principalmente, o bem-estar familiar e preservação dos interesses da criança. “O menor recebe educação, apoio emocional e sustento do pai afetivo por praticamente toda a vida. Porém, sem uma paternidade registral presente, esta criança e a família enfrentavam limitações no cotidiano e uma insegurança emocional”, descreve.

Outro caso do tipo ocorreu em Gravataí

Em maio de 2019, o Tribunal de Justiça divulgou uma decisão semelhante à que contemplou os moradores de Sapucaia do Sul, onde foi determinada a inclusão do pai afetivo no registro de uma criança de Gravataí.

A mãe mantinha um relacionamento desde 2003 com o pai afetivo, quando passaram por um rompimento entre os anos de 2011 e 2012. No período da separação, ela teve um breve relacionamento com outro homem, do qual surgiu a gravidez. No nascimento, o pai biológico registrou o menino, porém sem ter acompanhado a gestação e não possuindo nenhum vínculo afetivo e financeiro com o filho. Já com o pai afetivo (padrasto) houve não só acompanhamento na gravidez, como nutriu sentimentos pelo recém-nascido, contribuindo em seu sustento.

Conselho Nacional de Justiça atendeu uma demanda social

A multiparentalidade foi regulamentada em 2017 por meio do provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com uma alteração em 2019. “Porque as relações sociais vão ficando mais complexas e a Justiça vai correndo atrás para regulamentar”, diz a titular da Vara da Infância e da Juventude de Novo Hamburgo, a juíza Ângela Martini.

Doutora em Psicologia do Desenvolvimento, a professora da Universidade Feevale Lisiane Machado de Oliveira lembra que hoje as famílias são diferentes de 20, 30 anos atrás. Os arranjos são variados e incluem padrastos, madrastas, tios, avós. “É importante dizer que os laços se constituem pela presença, de como essas relações vão se dar e como essa criança vai precisar se sentir amada, desejada pelos novos membros da família”, reflete.

Lisiane destaca que o amor é algo que se constrói e, embora não exista uma manual, é uma situação perfeitamente possível a criança desenvolver afeto paternal e maternal por duas pessoas diferentes. “Hoje nós vivemos muitos casos de pais separados, de famílias homo e monoparentais. Não necessita ter o laço sanguíneo”, pondera.

De acordo com Ângela, a multiparentalidade é diferente da adoção, onde o registro anterior é anulado e a pessoa adotada começa uma nova história com a nova família, incluindo a documentação. “Usar o sobrenome daquela pessoa que te dá afeto é um sentimento de pertença. É um reconhecimento, é como se fosse um selo daquele sentimento”, define.

Quando se pode ter mais pais?

Conforme Ângela, a Justiça sempre parte da máxima de que qualquer ação deve reverter a favor da criança e do adolescente. No entanto, a multiparentalidade é uma possibilidade que também alcança os adultos.

No caso de solicitação de mudança de registros para crianças até 12 anos, o pedido deve ser feito via judicial. “Só pode acrescentar um pai e uma mãe”, informa a magistrada.

Nas outras faixas etárias, pode ser solicitado direto ao Cartório de Registro. Segundo a juíza, nesta segunda opção, o pedido é encaminhado ao Ministério Público para que emita um parecer favorável. Este registro é irrevogável. A exceção é para os casos em que houver dissimulação de afeto por interesses econômicos.

A partir do momento que o outro nome é incluído, não há diferenciação entre o pai/mãe biológico e o pai/mãe afetivo, todos têm os mesmos deveres e direitos sobre o filho. Além disso, o nome de todos os avós paterno e maternos são incluídos no documento. “Mas esse filho também terá os deveres, serão três pais para auxiliar no futuro”, pondera Ângela.

No caso em que os pais possam se separar, a decisão sobre a guarda segue os procedimentos rotineiros da Justiça.

Decisão fortalece laços e resolve problemas legais

A advogada Maria Teresa traz um exemplo prático da necessidade dos pais afetivos terem o registro. “Imagine uma criança doente na presença do pai afetivo, em um dia que a mãe esteja viajando a trabalho, por exemplo. E com o pai biológico residindo em outro Estado. Quem seria o responsável autorizado para uma baixa hospitalar?”, indaga.

A família Sganderla conta que chegou a cogitar se mudar para Portugal, onde tem familiares. O que impediu foi justamente a documentação de Wendel. “Sem ele não fazia sentido nenhum. Como a gente iria embora sem nosso filho?”, explica o casal.

Luana está grávida, com previsão de nascimento para setembro. Se o bebê for um menino vai se chamar Lucas, nome escolhido por Wendel. “Por mim a gente teria tido um outro filho logo, para os dois crescerem juntos. Mas a Luana não quis”, conta Luciano.

Luana relata que Luciano sempre foi um grande companheiro e jamais fez distinção pelo fato de Wendel não ser filho biológico dos dois. “A gente precisou fazer adaptações à medida que ele foi crescendo, porque educar não é fácil. Mas a gente tem um respeito muito grande um pelo outro”, resume o pai.

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