Aproveitando a quarentena imposta pela pandemia, tenho colocado em dia as dicas de filmes e séries que volta e meio recebo. A do momento chama-se "Little Fires Everywhere". No momento em que escrevo essa coluna encontro-me na metade dos oito episódios, mas um aspecto já me deixou pensativo. Sem adentrar em território de spoilers, explico. Trata-se de uma imigrante chinesa, ilegal nos EUA, que, após meses de penúria, sem conseguir trabalhar, com uma filha recém-nascida, desvalida de meios sequer para pagar o aquecimento ou, mesmo, o leite da filha, acaba, no desespero, abandonando-a em frente a um quartel de bombeiros. Meses mais tarde vem a encontrar a menor, já na guarda provisória de um casal, e faz um escândalo ao reconhecê-la, dando início a providências legais para retomar sua custódia. Exatamente aí é que terminou o último episódio a que assisti: ainda não sei o desfecho. Mas isso não impede o exercício de transposição da hipótese para nossa realidade.
Pois bem, ilustrado leitor, acaso chamado a decidir, como você se posicionaria? Importante saber alguns detalhes sobre os envolvidos: a mãe biológica não possuía qualquer familiar ou companheiro; à época do reencontro, já contava com emprego estável e residência fixa; os adotantes, casal na casa dos quarenta e poucos anos, com situação econômica privilegiada, estavam na guarda da infante fazia mais de seis meses. Já haviam tentado, pelo menos, três inseminações, sem êxito, e estavam próximos de desistir da paternidade.
Que dilema salomônico! Importante ter-se em vista que sempre se dará preponderância ao melhor interesse da criança. Isso, entretanto, se reveste de profunda subjetividade e não elucida propriamente a questão. Mais algumas ponderações fazem-se pertinentes: a Justiça não reconhece relevância em razão da condição financeira de uma das famílias; de outro lado, também não desconhece o vínculo, afetivo e psicológico, formado entre a criança e seus guardiões. Em relação à mãe biológica, deve-se dar relevo à situação de fragilidade e de hipossuficiência por que atravessava no momento de seu ato desesperado. Uma mãe, salvo abjetas exceções, jamais abriria mão de seu filho não fosse para proteger sua integridade e salvar-lhe a vida; agir de forma diversa poderia levar a infante à morte por inanição.
Com base em todos esses dados, faça você também o experimento de ter de decidir. Situações como essa, por mais que aqui se trate de hipótese ficcional, não são raras no cotidiano forense. Por felicidade, não serei eu a julgar tão complexa causa.