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Como é atender um paciente idoso com Covid-19 em casa

Por Leandro Minozzo
Publicado em: 13.07.2020 às 09:33

Vou contar um pouco do que sinto e vejo, das decisões que preciso tomar junto com as famílias. Acho pertinente mostrar o quanto se cuida e o quanto é complexa a assistência a pessoas com suspeita ou com a infecção pelo coronavírus. É bem mais complicado que dar um kit. É algo muito distante de simplesmente "não fazer nada". Ouvi de uma colega médica que não prescrever a hidroxicloroquina é um "luxo" ou é não ser corajoso...

Primeiro, não é uma situação de atendimentos médicos normais. Há um clima de distanciamento com o outro e o cuidado médico é justamente o contrário disso.

Nos últimos tempos, as consultas em casa se tornaram mais frequentes. Sinto-me como o Dr. Bernard Rieux, em "A Peste": atento e pensativo, testemunha de reações tão diversas que vão da resiliência ao delírio.

No livro, Camus destacou a indiferença pública ao crescimento dos números de mortos - coincidência? Dr. Rieux se mostrou um pouco mais frio que eu. Não buscava explicações transcendentais, era prático numa situação de cansaço e de um absurdo que eram as mortes. Felizmente, enquanto em cada visita que fazia ele se dava sentença aos pacientes, hoje temos um quadro, apesar de tudo, mais esperançador.

Em idosos, nem tudo se revela na pressa. Os sintomas são atípicos, imprecisos. Chegar ao diagnóstico requer uma anamnese detalhada, a qualquer diagnóstico. A doença, a Covid-19, além de nova, é diferente. Sem contar que existem tantas outras que são comuns e se misturam. Às vezes repito as perguntas, recomeço. Nem sempre há febre.

A queixa inicial pode ser até de uma inespecífica dor abdominal. E os idosos normalmente, mesmo com pneumonia, não verbalizam que estão com falta de ar. São pessoas que colecionam diagnósticos, como bronquite, Alzheimer, insuficiência cardíaca. São dez, quinze ou mais de vinte medicamentos numa caixa ou no armário. Pior quando estão espalhados e não há quem informe bem. Como funcionam os rins? Como está o coração? E a cabeça?

O oxímetro, aquele aparelho que se coloca no dedo, tem ajudado muito. Costumo medir também depois que o paciente dá uma caminhadinha, quando consegue. É um instrumemto indispensável na maleta.

Depois disso tudo, peço permissão e vou pra mesa da cozinha. Escrevo um relato enquanto penso quieto. Antigamente, aceitava o café, cuca ou bolo. Brincava com o cachorro ou puxava assunto a partir das fotos dos netos na parede. Imagens de um legado de vida que acompanham fotos pintadas de casamentos e aniversários de 80 ou 90 anos; muitas imagens e fotos de Nossa Senhora, de Jesus e salmos enquadrados: eram várias conversas que poderia puxar. Mas anda difícil. Tento não me esquecer do: "Vai ficar tudo bem."

Hoje, não tem como ser aquele médico do diagnóstico exato sem a ajuda de exames. Humildade e vigilância parecem ser ainda mais necessárias do que qualquer coisa. Além de encaminhar os laboratoriais e os específicos para coronavirus, a Tomografia de tórax sem contraste tem dado informações relevantes e, quando se tem a indicação e a disponibilidade, tem sido um exame que dá uma agilidade decisiva. Em poucas horas já pode ter informações que ajudam.

E isso é só o começo.

O acompanhamento dos pacientes que podem ficar sem oxigênio e em casa é demandante. Os filhos têm ajudado muito, fazem perguntas e ficam ansiosos e com medo - a maioria já passou dos 50 anos e teve exposição próxima e também está contaminado. Tenho me encantando com o esforço de muitos.
A comunicação é intensa: pelo menos 3 contatos ao dia pelo telefone. As fotos com o oxímetro mostrando números luminosos acima de 94% indicam que o paciente está bem. São fotos que chegam e distribuem alívio. Às vezes, é inevitável e preciso encaminhar a pessoa para a hospitalização, quando a saturação baixa, quando outros sinais aparecem ou a assistência em casa é inviável. Internar um idoso, em especial os frágeis, provoca sempre a avaliação de todos riscos e benefícios. Tomar essa decisão à distância é mais fácil, quando se vê o idoso no conforto do lar faz ponderar bastante. Porém, o desencadear da COVID limita o que pode ser feito no domicílio - oxigênio e recursos intensivos entram em cena, com outros olhares humanos exercendo o cuidado. Os familiares geralmente imploram para que não se leve o idoso ao hospital. Afinal, seu idoso está ali quentinho no seu edredon, acordado e conversando. Há um temor muito grande do isolamento e sofrimento, de não ver mais seu ente querido por muitos dias. Mas, por confiarem e após explicações, aceitam a orientação.

Do hospital, o contato continua. Mesmo depois da alta, o cuidado permanece em casa e com a atenção às complicações. Os pacientes retornam do hospital com risco de queda elevadíssimo, com antibióticos e muitos com depressão e confusão mental. A atenção prestada dura cerca de duas semanas. Até o paciente estar respirando bem e passando dos quatroze dias do início dos sintomas, o que o paciente e a família demandam é isso que relatei. Os fisioterapeutas, não poderia deles esquecer, são fundamentais nesse momento, na reabilitação.

Passando essa etapa, já há tranquilidade e tudo parece que foi um pesadelo.

As histórias se repetem na forma da contaminação: familiares ou amigos que visitaram idosos disciplinados e enclausurados.

Sobre os exames, são caros e precisam ser repetidos. Às vezes,precisa-se solicitar angiotomografia, ecografia das pernas e muitos de laboratório. Os anticoagulantes também não são nada baratos.

Felizmente, temos o SUS e seus trabalhadores. Felizmente mesmo. Tenho tranquilizado muitas famílias que tinham receio de procurar serviços públicos. SAMU, UPAs e os hospitais públicos têm ajudado a não termos uma catástrofe.

Sobre ser médico na pandemia, é um trabalho visceral. Lembro-me do dia da formatura cada vez que examino o tórax de um paciente ou chego na sua casa contando uma piada. Com as máscaras e a proteção facial as palavras e os olhares se tornam ainda mais marcantes.

É um cuidado sistemático: médicos clínicos, emergencistas, intensivistas, radiologistas, biomédicos, fisioterapeutas, enfermeiros, técnicos, agentes, fonos, trabalhadores da higienização. Há muito cuidado por aí que nem percebíamos, apesar de tantos ainda estarem apegados a si próprios e desconsiderarem os outros.

Não há heróis numa pandemia. Há incertezas e solidão. Há sociedades que se saem bem e outras não.

O melhor e único jeito de evitar todo esse sofrimento é que o idoso não pegue a doença. Essa deve ser a prioridade. Nas histórias que vejo, fica bem claro que o vírus caminha através das pessoas. Enquanto isso acontecer, não teremos descanso. O absurdo que limita a vida, que traz o sofrimento, continuará.

Vou aprendendo, com muito estudo e muita humanidade, em todas suas dimensões que testemunho.

Cuidem-se!

 

Leandro Minozzo, Geriatra e Nutrólogo


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