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Opinião Gilson Cunha

Farenheit 2021

Por Gilson Luis Cunha
Publicado em: 11.03.2021 às 23:16 Última atualização: 12.03.2021 às 11:54

(Data estelar 14032021)

“Se te derem papel pautado, escreve ao contrário”

-Juan Ramón Jiménez

Pepe Le Pew Foto: Reprodução
A frase acima é a epígrafe de Fahrenheit 451, o romance distópico de Ray Bradbury sobre um futuro indeterminado no qual os bombeiros já não apagam incêndios, uma vez que as construções e o quase tudo que há nelas, são à prova de fogo. A função deles é, na verdade, queimar livros. Ficção. Não ficção. Ciência. Arte. Religião. Filosofia. História. Qualquer tipo de livro. Não importa. O romance acompanha a trajetória de Montag, um bombeiro que, um dia resolve ler um livro antes de queimá-lo e torna-se um proscrito, defensor dos livros que devia destruir.

A queima de livros sempre foi associada com o obscurantismo, com a selvageria, com a destruição das bases da própria civilização. Da destruição da biblioteca de Alexandria às fogueiras do Terceiro Reich, a destruição do registro histórico e cultural sempre serviu ao que há de mais vil e repulsivo, a implementação de regimes totalitários, a censura, a servidão moral e intelectual.

Já faz algum tempo que eu não escrevia crônicas para essa coluna. Meu tempo é escasso. E a onipresente pandemia, como faz com todos nós, também cobra seu quinhão da minha energia. “Não é hora para amenidades como falar de cultura pop”, pensava eu. Mas algo está mudando e numa velocidade assustadora. Um movimento em escala global, cujo objetivo é “higienizar” o passado, destruindo livros, filmes e outras obras de arte, progride a passos largos, rumo à hegemonia em escala global. Clamam para si o direito de “editar a realidade”. Eles querem “um mundo melhor”. E farão tudo o que estiver a seu alcance para conseguir esse “mundo melhor”. Isso inclui a queima, simbólica ou não, de livros, filmes e, principalmente, de reputações.

O processo começou em universidades estadunidenses e europeias. E foi importado pela intelligentsia brasileira. Obras de arte “problemáticas”, aquelas que retratam o passado como ele foi, bruto, imperfeito, agora “precisam” ser “editadas”. A cultura do cancelamento, esse câncer que invadiu a internet e pulou dela para o mundo real, não se contenta em “sumir” com gente de verdade. Seu alvo agora são livros, filmes e desenhos animados. Estúdios como Disney e Warner já ensaiam a remoção de seus catálogos de desenhos como Pepe Le Gambá (foto), sob justificativa de que promoveriam a volta a “costumes bárbaros e ultrapassados”. Pois bem. No caso citado, não sou fã do gambá francês sem noção que confunde uma gata com alguém da espécie dele, por causa de uma mancha de tinta branca que a pobre felina adquire nas costas.

Pepe não é um herói. É um mala-sem-alça, desagradável, chato, e fedorento, que persegue a infeliz gata. E isso fica óbvio no desenho. Será que já ocorreu ao pessoal da Warner, dona do personagem, que ele faz mais pela civilização sendo visto do que jogado em algum cofre ou tendo suas cópias master destruídas? Será que não entendem que um dos motivos pelos quais pessoas normais não praticam atos de barbarismo é porque alguém, em algum momento da história, os documentou e os divulgou, para que jamais os esquecêssemos?

O mesmo vale para iniciativas como remover palavreado racista ou sexista de obras antigas. O mundo é cheio de preconceitos? Evidente que é. Mas já foi bem mais. E não teria mudado se essas atitudes fossem disfarçadas, maquiadas. Vejo filmes dos anos 40, 50, 60 e 70 e, muitas vezes, me pego em momentos de grande vergonha alheia. E isso É BOM. Ajuda a mostrar como evoluímos desde, por exemplo, Os Batutinhas originais.

Apesar de divertidos, os episódios daquele seriado dos anos 20, 30 e 40 eram grotescamente racistas. Racistas a ponto de minha filha, então com cinco anos, olhar para mim e perguntar: “porque eles dão as partes mais perigosas (das cenas) para as crianças negras?”. Mesmo nessas circunstâncias, obras assim têm um propósito: jamais deixar que nos esqueçamos do passado, por mais degradante e preconceituoso que ele tenha sido.

E Pepe Le gambá não é o único. A Warner também anunciou que vai dar sumiço em Ligeirinho (Speedy Gonzales, no original) por causa de sua representação estereotipada dos mexicanos. O personagem, junto com seu colega gambá, não aparecerá na continuação de Space Jam, o filme dos anos noventa que mistura atores e desenhos animados.

O irônico é que Gabriel Iglesias, o ator hispânico que emprestaria a voz ao personagem, perdeu seu emprego em nome de “uma boa causa”. Só que ele não apenas ficou chateado com a perda do emprego, mas também já afirmou que nunca viu nada de errado com o desenho.

Na Disney, o cenário não é melhor. Os Aristogatos, clássico desenho da Disney, está sendo cotado para ser removido do catálogo da empresa , assim como já o foi o filme A Canção do Sul, por causa de sua “insensibilidade racial”. Dumbo, o desenho longa metragem dos anos 40, também está na mira.

E os livros começaram a ser censurados, em plenos Estados Unidos da América, “lar dos valentes, terra dos livres”, como diz a letra de seu hino nacional. Dr. Seuss, um clássico autor infantil, aclamado por gerações, está tendo sua obra removida das principais livrarias dos Estados Unidos. Várias iniciativas similares começam a se insinuar ao redor do planeta, em sociedades supostamente democráticas, “bastiões da liberdade de expressão e dos direitos do indivíduo.”

E praticamente ninguém faz nada. A apatia domina a todos. São tempos de pandemia. A sobrevivência de nossas famílias é nossa única prioridade. Grandes estúdios, editoras, políticos, todos eles sabem disso. E estão vibrando com a possibilidade de acelerar seus planos de engenharia social. Eles querem editar a realidade. Querem que você viva no mundo que eles acham que é melhor para você.

As fogueiras do nazismo eram fáceis de identificar. Eram alimentadas pelo ódio. As fogueiras do moderno totalitarismo são alimentadas pelo “amor”. As obras que estão sendo censuradas e, num futuro próximo, possivelmente destruídas, são “ruins para você e, portanto, devem ser proscritas”. Essa é a ideia.

Fusões e aquisições como as da Disney, por exemplo, em sua sanha de conquista mundial, tornam possível a censura e destruição de acervos inteiros. Toda a produção da “finada” TWENTIETH CENTURY FOX agora pertence à megacorporação do camundongo. Eles podem fazer o que bem desejarem com um século inteiro de filmes, séries, discos etc. É possível que muita coisa desse acervo jamais volte a ver a luz do dia. Esse não é um processo aleatório. Tem seus idealizadores, muito bem colocados, não só nas empresas de entretenimento, mas também na mídia e na classe política. É uma invasão silenciosa. E precisa ser detida.

O momento é preocupante. Não apenas a democracia, mas as liberdades individuais estão ameaçadas por esse traiçoeiro ataque à cultura universal. Já se cogita, em universidades americanas, a remoção de autores como Shakespeare de cursos de literatura, e das próprias bibliotecas, porque ele “não atende aos modernos requisitos de diversidade”. É o totalitarismo se escondendo sob o manto da igualdade e da fraternidade.

Nas últimas semanas, tive o desprazer de ver gente em fóruns da internet sugerindo quais obras de arte deveriam ser poupadas ou não. Quanta arrogância. Quem se acharia no direito de escolher por toda uma civilização? Jasão podia ser um cretino. Abandou Medeia, tão logo conseguiu dela o que queria. Devemos queimar livros de mitologia grega por causa disso? Os exemplos são tantos que não vou me alongar.

Você sabia que Mulan, da Disney, foi filmado num campo de concentração para a minoria étnica Uigur, em “um certo país da Ásia?” A corporação do camundongo até agradece a seus “patronos” pelo uso do campo nos créditos do filme. Saiba disso: As grandes empresas de entretenimento já não se preocupam mais em entreter. O cliente já não importa. Elas se tornaram plataformas políticas, mantidas por governos totalitários, políticos com interesses mais do que obscuros, e “filantropos” do nível de vilões de filme 007.

Pode parecer engraçado. Mas não é. Eles estão por aí. E são hostis.

Obras de ficção estão sendo censuradas e, brevemente, destruídas, porque “são ruins para você e, portanto, devem ser proibidas”. Mas quem decide isso? E com que poder? A turba “do bem” não responderá a essas perguntas. E fará tudo para calar quem ousar repeti-las.

Você gostaria de viver num mundo “editado”? Um mundo no qual tudo, o que você sabe sobre o passado e o presente passou pelas mãos de “notáveis”, “sábios”, que têm o direito exclusivo de aprovar ou não o que você vê, ouve, ou pensa? Suspeito que a resposta seja um sonoro NÃO!

Então, por favor, resista! Compre todos os clássicos que puder, livros, filmes, músicas, etc. Se não estiverem disponíveis, tente encontrá-los onde puder. “Navegue pelo alto mar”, se necessário. Mas não deixe o legado de nossa civilização ser apagado por um bando de fanáticos. Mais do que uma “tola história em quadrinhos” ou um “filme comercial e bobinho”, o entretenimento despretensioso é nossa última linha de defesa. Das tabuetas de barro da Mesopotâmia ao Blu-ray, histórias de deuses e heróis, e de gente comum, fizeram parte de nossas vidas, não porque foram criadas para serem clássicas. O objetivo delas era entreter. Com todos os seus defeitos, defeitos humanos, elas se tornaram clássicos porque nós não as esquecemos.

Nossas histórias são a alma de nossa civilização. Não as deixe morrer. Vida longa e próspera e que a força esteja com você. Até outro domingo.


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