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Notícias | País Sem eficácia comprovada

Após uso de 'kit Covid', pacientes vão para fila de transplante; ao menos 3 morreram

Medicamentos estão sendo apontados por médicos como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios

Por Estadão Conteúdo
Publicado em: 25.03.2021 às 14:24 Última atualização: 25.03.2021 às 15:01

Brasil é atualmente o epicentro, no mundo, na luta contra a Covid-19 Foto: Pedro Guerreiro / Agência Pará / Fotos Públicas
O uso do chamado kit Covid, que reúne medicamentos sem eficácia contra a doença, mas que continua sendo prescrito por alguns médicos e propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro, levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado em São Paulo e está sendo apontado como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios, segundo médicos.

Hemorragias, insuficiência renal e arritmias também estão sendo observadas por profissionais de saúde entre pessoas que fizeram uso desse grupo de drogas, que incluem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes. O aumento relatado por médicos de pacientes que chegam ao pronto-socorro com algum efeito relacionado ao uso desses remédios coincide com o agravamento da pandemia.

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Números do Conselho Federal de Farmácia (CFF) mostram que o total de unidades vendidas de ivermectina, por exemplo, subiu 557% em 2020 em comparação com 2019, sendo dezembro o mês recordista de vendas da droga. O remédio, indicado para tratar sarna e piolho, não teve sua eficácia contra a Covid comprovada. Seu uso contra o coronavírus foi desaconselhado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e pelo próprio fabricante do produto, a Merck.

O produto, porém, é um dos que foram utilizados pelos cinco pacientes que entraram na fila de transplante de fígado. Todos eles haviam tido, semanas antes, diagnóstico de Covid e receberam a prescrição do chamado "tratamento precoce".

Hemorragias e a insuficiência renal

Além dos casos de hepatite medicamentosa associada ao uso de drogas do kit Covid, médicos relatam outros efeitos colaterais que vêm aparecendo em pacientes sem doenças crônicas, mas que haviam utilizado os medicamentos.

Médico nefrologista do Hospital das Clínicas da USP, Valmir Crestani Filho relata ter atendido pacientes com hemorragia e insuficiência renal ligadas direta ou indiretamente ao uso de medicamentos ineficazes contra a covid. Em um dos casos, o doente recebeu azitromicina e teve cólicas, diarreia e fortes dores abdominais, efeitos conhecidos do antibiótico.

Ao procurar um serviço de saúde, o homem recebeu omeprazol para o alívio dos sintomas e acabou desenvolvendo um quadro raro de insuficiência renal associada ao medicamento. "O omeprazol é uma medicação boa, tem várias indicações, mas existe uma complicação rara que pode acontecer chamada nefrite intersticial aguda, que é como se fosse uma alergia nos rins", conta.

O paciente precisou ser internado para fazer algumas sessões de diálise e se recuperou. "Mas foi uma grande dificuldade, não tinha leito. É difícil esse quadro em uma situação de colapso", afirma.

O outro caso é de um paciente que recebeu prescrição de anticoagulantes como tratamento precoce para a Covid e acabou tendo uma hemorragia gástrica. O homem também precisou ser hospitalizado, mas se recuperou. Ele tinha um quadro de úlcera não diagnosticado e a medicação acabou agravando o problema.

"A partir do momento que essas medicações passam a ser usadas por milhões de pessoas, esses efeitos, mesmo que raros, começam a aparecer com mais frequência. Quando a gente prescreve um medicamento é porque os benefícios são maiores que os riscos. Se esses remédios não têm nenhum benefício contra a Covid-19, todo efeito colateral foi em vão", afirma.

O médico Gerson Salvador também atendeu na última semana casos de efeitos colaterais de anticoagulantes. "Era uma paciente de 40 anos com Covid confirmada usando dose alta do anticoagulante enoxaparina e outros medicamentos em casa. Veio com piora respiratória e com sangramento de origem pulmonar", conta.

Ele também relata casos de pacientes que, por estarem tomando as drogas do kit Covid e julgarem estar protegidos de um agravamento da doença, demoram muito a procurar um hospital e surgem em estado gravíssimo. "Em um dos últimos plantões, atendi um paciente que estava tomando cloroquina e usando oxigênio em casa. Ele chegou azul. Tive de intubar na hora", diz. / F.C.

 

'Remédio do Bolsonaro'

Confira a seguir o depoimento de C. (ela não quis ser identificada), filha de uma das vítimas do novo coronavírus. "Fui diagnosticada com Covid em dezembro e meu pai, como morava comigo, decidiu fazer o teste. Ele fez o PCR no dia 5 na Prevent Senior e foi orientado a esperar o resultado em casa. Mesmo sem sintomas nem teste positivo, ele recebeu o kit Covid lá mesmo. Tinha azitromicina, cloroquina, vitaminas, corticoide. Ele tomou por cinco dias. Eu sabia que esses remédios não têm eficácia comprovada, mas como meu pai era muito teimoso por questões políticas, nem adiantou eu falar. Ele disse que queria porque era o 'remédio do Bolsonaro'. O corticoide eu sabia que, se dado na fase inicial, pode até piorar a resposta imune, mas não adiantava falar. No dia 13 de janeiro, ele começou a ter sintomas e fez um novo teste. Esse deu positivo. Ele voltou a tomar os remédios do kit, mas três dias depois piorou e foi internado. Ele nem queria ir ao hospital, achava que estava bem. Acho que esse kit dá uma falsa sensação de segurança. No dia 19, ele teve duas paradas cardíacas e foi intubado. Três dias depois, morreu. A causa foi Covid, mas a gente sempre fica pensando se esse monte de remédio pode ter diminuído as chances dele."

Pele amarelada

Quatro deles foram atendidos no Hospital das Clínicas da USP e o outro no HC da Unicamp. "Eles chegam com pele amarelada e com histórico de uso de ivermectina e antibióticos. Quando fazemos os exames no fígado, vemos lesões compatíveis com hepatite medicamentosa. Vemos que esses remédios destruíram os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino", diz Luiz Carneiro D'Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do HC-USP e professor da universidade.

Sem esses dutos, explica ele, substâncias que podem ser tóxicas ficam na circulação sanguínea, favorecendo quadros infecciosos graves. "O nível normal de bilirrubina é de 0,8 a 1. Um dos pacientes está com mais de 40", conta ele.

D'Albuquerque conta que, dos quatro pacientes colocados na fila do transplante no HC, dois tiveram doença aguda e morreram antes da operação.

"É uma combinação de altas dosagens com a interação de vários medicamentos. A substância desencadeia um processo em que a célula ataca outros células, levando a fibroses, que causam a destruição dos dutos biliares", diz Ilka Boin, professora da Unidade de Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Unicamp, onde um paciente aguarda transplante.

Os dois especialistas explicam que as biópsias do fígado desses pacientes evidenciam que os casos são de origem medicamentosa e não complicações do próprio coronavírus. "A Covid pode atacar o órgão, mas de uma forma diferente. Ela causa pequenos trombos (coágulos) nos vasos. Esse padrão que encontramos é de lesão por medicamentos", diz Ilka.

H., de 57 anos, é um dos pacientes na fila. Ele conta que tinha a saúde perfeita antes da Covid e que nunca tomava remédios. "Nem aspirina." Ele conta que decidiu tomar os remédios do kit Covid por causa de estudos preliminares que mostravam algum benefício da droga. "Fiz com acompanhamento médico, mas acho que não imaginavam que isso poderia ocorrer comigo, alguém que não tinha nenhuma doença crônica."

Além de duas mortes de pacientes do HC-USP, um óbito por doença hepática aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre, relata a neurologista Verena Subtil Viuniski. "Era um paciente com quadro psiquiátrico que estava agitado e confuso e marcou um encaixe no ambulatório. As enzimas do fígado estavam 30 vezes mais altas do que o normal. Dez dias antes, ele tinha tido Covid e tomado remédios do kit."

O paciente foi levado para a emergência, onde começou a convulsionar. Exames revelaram que ele desenvolveu encefalopatia hepática, condição em que o cérebro é deteriorado por toxinas que o fígado não conseguiu filtrar. "É muito grave, difícil de reverter. Ele morreu no mesmo dia", diz Verena, que disse já ter atendido outros seis casos de hepatite por medicamentos, ainda que menos graves. "Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo."

Entrevista com Mauro Ribeiro, presidente do CFM

O parecer que autoriza médicos a prescreverem cloroquina contra Covid é de abril de 2020. Por que não houve revisão após essas novas evidências?

Temos uma doença altamente transmissível, que mata. Na fase inicial, não tem tratamento reconhecido de modo indubitável por parte da ciência. Agora, há estudos observacionais que mostram o benefício de algumas drogas. As drogas que são usadas têm poucos efeitos colaterais, embora agora existam relatos de duas universidades brasileiras de cinco pacientes que teriam evoluído para morte ou fila para transplante e que isso teria sido causado por uma dessas drogas. Mas não tem comprovação científica que foi uma dessas drogas que causou. Estamos em alerta. Essa ideia de que a ciência já concluiu que essas drogas não têm efeito não é 100% verdadeira. Na literatura, tem de tudo. Ambos os lados têm trabalhos com metodologias questionáveis. Já que não há consenso na literatura, é uma doença devastadora, e que, do aspecto observacional, há algumas drogas que podem ter efeito, delegamos ao médico, junto com o paciente, decidir o tratamento. Ele tem de sentar com o paciente e explicar que é um tratamento que não tem comprovação que faça diferença e que se o paciente quiser ser tratado e o médico se disponibilizar, que seja feito. A classe médica está dividida.

Um estudo observacional não tem o mesmo peso que um estudo randomizado duplo cego. Estudos com essa metodologia padrão ouro mostram a ineficácia da cloroquina e azitromicina. Em que estudos vocês se baseiam?

Não há uma instituição que seja guiada mais pela ciência do que o CFM. Temos profissionais contratados que fazem rastreamento de tudo na literatura, mas não temos verdades absolutas. Temos uma série de dúvidas. Também há estudos prospectivos e randomizados mostrando a ação do tratamento precoce. Todos são passíveis de crítica. Único ponto que o CFM coloca é que nem incentivamos nem proibimos. Nenhuma entidade é detentora do saber. Temos a responsabilidade legal de definir o que o médico pode ou não fazer.

Mas há muitos médicos propagandeando esse tratamento precoce como a cura da doença...

Existe resolução do CFM sobre propaganda enganosa. Para todos os excessos, estão sendo abertas sindicâncias nos conselhos regionais. Tem médicos que fazem filmes falando maravilhas do tratamento precoce. Esses excessos são condenáveis, sim. O médico não pode, baseado no parecer do CFM, dizer que o tratamento é milagroso.

Nesse momento, o CFM não pretende rever aquele parecer?

Não, nesse momento não vemos necessidade de modificar o parecer e temos dificuldade de entender por que tamanha resistência de se respeitar a autonomia do médico e a do paciente para o tratamento de uma doença que não tem tratamento conhecido nessa fase. O nível do médico brasileiro é muito bom, ele estuda, não precisa de ninguém para tutorar.

O CFM se preocupa com o uso indiscriminado do kit covid?

Preocupa muito porque existe uma norma da boa medicina em que você deve prescrever o menor número de medicações possíveis. Cada vez que agrega uma nova droga, corre sempre o risco de interação medicamentosa, podendo levar a efeitos catastróficos. Somos contra uma prefeitura ou quem quer que seja entregar o kit ao médico dizendo que tem de prescrever aquilo.

Se o médico prescreve esses remédios e o paciente tem efeito colateral, ele pode ser responsabilizado?

Claro que pode, porque quando damos autonomia ao médico, não é um uma carta de alforria para fazer aquilo que quer. Se ele prescrever cinco ou seis drogas e, por alguma razão, o paciente apresentar efeito e aquilo se transformar numa denúncia do conflito regional, ele vai responder por isso.


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