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Para Ministério Público, propostas do novo Código de Processo Penal aumentam impunidade

Normas que regulam processo penal brasileiro estão em discussão no Congresso Nacional. Categorias criticam propostas e futuro procurador-geral do MP gaúcho fala em revanchismo por causa da Lava-Jato

Por Ermilo Drews
Publicado em: 05.06.2021 às 08:00 Última atualização: 05.06.2021 às 09:21

Deusa da Justiça Dificuldade em condenar criminosos de colarinho branco, perda de autonomia do Ministério Público e de magistrados, restrições a investigações, burocracias e exigências que devem colocar obstáculos em prisões e condenações. Estas são algumas críticas que recaem sobre a versão atual do relatório da reforma do Código de Processo Penal (CPP), que define o rito que deve ser seguido para prender, soltar, condenar ou inocentar alguém.

Em discussão em comissão especial na Câmara dos Deputados desde 2019, o novo texto traz 30 novas propostas apensadas ao projeto de lei original, que veio do Senado em 2010. No entanto, profissionais que executam as regras do CPP, especialmente promotores e procuradores, não gostaram nada do que leram.

Por isso, entidades representativas do Ministério Público, como Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e Associação Nacional de Membros do Ministério Público (Conamp), elencaram 48 pontos que consideram que precisam ser revistos antes do projeto de lei seguir para o Plenário. Entre as principais reivindicações (saiba mais na página ao lado) está a manutenção do amplo poder de investigação criminal do Ministério Público, o que o relator do projeto, deputado federal João Campos (Republicano-Goiás), se comprometeu em adequar.

Futuro procurador-geral do MP gaúcho, Marcelo Dornelles, em entrevista à Rádio ABC 103.3 FM, considerou o texto danoso no enfrentamento da criminalidade. "Isso vem numa onda de revanchismo por causa da Lava-Jato, tentando atacar o MP no seu cerne, à medida que o amarra, não podendo investigar, não podendo atuar contra o crime organizado, tendo dificuldades contra homicidas."

Isso vem numa onda de revanchismo por causa da Lava-Jato, tentando atacar o MP no seu cerne, à medida que o amarra, não podendo investigar, não podendo atuar contra o crime organizado, tendo dificuldades contra homicidas.

A versão atual do relatório em discussão também desagradou delegados de polícia. No Rio Grande do Sul, a Associação dos Delegados de Polícia (Asdep) manifestou preocupações a respeito de algumas mudanças propostas. Um dos pontos abordados pelos delegados é a parte do texto que se refere à investigação defensiva, feita por advogados de defesa, pois não é explicitado regulamentações que possam controlar tais ações.

"Da forma como está, possivelmente irá causar danos à polícia judiciária na condução do inquérito, assim como ao processo. Por isso, é necessário cautela e debate sobre o assunto", afirma o vice-presidente financeiro da Asdep, Rodrigo Pohlmann.

A exclusão do reconhecimento facial fotográfico também é motivo de discordância para a entidade. "Retirar o reconhecimento fotográfico como prova pode limitar cada vez mais as formas de investigação. Reconhecemos o argumento que por vezes pode induzir à discriminação racial, porém isso não representa a maioria dos casos", afirma o presidente da Asdep, Pedro Carlos Rodrigues.

Juízes pedem ajustes

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) é outra entidade que reivindica ajustes no texto e encaminhou nota técnica aos deputados, apresentando pauta mínima, de pontos que considera indispensáveis, e outras sugestões que considera importantes.

Representante da AMB, Danniel Bomfim defende ajustes nos dispositivos sobre sentença. Atualmente, a proposta estabelece que o juiz proferirá sentença condenatória nos limites da acusação inicial. Se o promotor se manifestar pela absolvição, o juiz não poderá condenar, salvo haja requerimento condenatório do assistente de acusação.

Segundo Bomfim, a AMB entende que esse dispositivo viola o princípio do chamado impulso oficial, em que compete ao juiz mover o procedimento ao longo das fases.

Por um processo penal mais célere

Presidente da Associação do Ministério Público do Estado (AMP-RS), João Ricardo Tavares afirma que a categoria tem conversado com deputados na tentativa de que a versão atual do relatório não seja aprovada.

"Não se discute que há necessidade de aprimoramento do código, mas que venha em benefício da sociedade, que deseja o fim da corrupção, da impunidade e combate mais efetivo da criminalidade. Nós precisamos de um processo penal mais célere, evidentemente com as garantias constitucionais à mais ampla defesa."

Grupo de trabalho substitui comissão

Na última semana, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), decidiu extinguir a comissão especial que analisava o novo Código de Processo Penal (PL 8045/10). "A comissão está em funcionamento desde 2019, e os prazos, tanto para os relatores parciais quanto para o relator-geral,  já foram prorrogados mais de uma vez", justificou. Os prazos se esgotaram em maio.

Lira decidiu criar um grupo de trabalho com até 15 parlamentares para oferecer um novo parecer ao projeto no prazo de 45 dias. "Uma matéria de alta complexidade como um projeto de código dificilmente poderia ser apreciado pelo Plenário sem prévio parecer", disse Lira. "Isso não é bom porque aumenta a influência do presidente da Câmara diretamente no grupo de trabalho", alerta Tavares.

O texto do deputado João Campos, relator da comissão especial, virou objeto de disputa em razão das mudanças propostas e não chegou a ser votado pela comissão. Entre outros pontos, Campos propôs novas regras sobre o tribunal do júri, mudanças nos poderes de investigação do MP, autorização de investigação pela defesa e mudança nas atribuições.

Elaborado por uma comissão de juristas e já aprovado pelo Senado, o projeto vai substituir o atual Código de Processo Penal, de 1941. Na Câmara, foram apensadas mais outras 372 propostas sobre o tema.

Problemas apontados pelo Ministério Público

A Associação Nacional de Membros do Ministério Público (Conamp) aponta 48 pontos da versão atual da revisão do Código de Processo Penal como preocupantes. O ABC selecionou os principais pontos questionados pelos membros do MP.

Limitação do poder investigatório do MP

O relatório do novo Código de Processo Penal (CPP) propõe restringir a capacidade investigatória do Ministério Público (MP), que apenas poderia investigar quando houver risco de ineficácia da apuração dos crimes em razão do poder econômico ou político.

Estabelece, como regra, prazo de duração de inquérito policial

A fixação de prazo para finalizar o inquérito policial não está de acordo com os parâmetros da legislação brasileira, já que o menor prazo prescrição de um crime previsto no Código Penal é de três anos. O relatório do CPP fixa em dois anos o prazo de conclusão da investigação policial. Além disso, o prazo estabelecido não considera a gravidade dos delitos nem a complexidade da investigação.

Usurpação de função do MP no Acordo de Não Persecução Penal

A versão atual do projeto assegura, em um primeiro momento ao investigado, e também ao delegado de Polícia, encaminharem proposta de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) - que dispensa a ação penal nos crimes sem violência ou grave ameaça e com pena inferior a quatro anos - ao Ministério Público. Este tipo de acordo assemelha-se a um termo de ajustamento de conduta, mas aplicado no campo criminal. Para os membros do MP, esta deveria ser uma prerrogativa da instituição, sob pena de banalização deste tipo de expediente.

Invasão da autonomia do Ministério Público

Enquanto titular da ação penal, se atendidos requisitos pelo acusado ou investigado, o Ministério Público poderá deixar de promover a acusação.Se forem cumpridas as condições determinadas pelo MP, será declarada a extinção da punibilidade do investigado. No entanto, ao possibilitar que delegados e investigados estabeleçam os termos deste acordo, retira-se do MP também a possibilidade de indicar o local da prestação dos serviços pelo investigado e o destinatário das prestações pecuniárias (pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social).

Permissão para advogados investigarem sem controle do Estado

No texto, há a previsão da investigação realizada por advogados de defesa e sem qualquer regulamentação do Estado. No entanto, dentro do sistema acusatório, todos os atores processuais penais devem observar a legalidade e as limitações constitucionais.

Proibição da condenação baseada em indícios do combate ao crime organizado

Ao sugerir a proibição da condenação com base em indícios, o relatório torna frágeis os instrumentos de combate ao crime organizado. O argumento é que se trata de um importante recurso para identificar crimes muitas vezes sem rosto, sem testemunhas e sem vestígios, sustentados e escondidos por quantias bilionárias. Exemplo seria a ação penal do Mensalão, cujos indícios foram as provas utilizadas pela condenação, o que foi ratificado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Burocratização da prova de reconhecimento de pessoas

O relatório dificulta a coleta de prova de reconhecimento pessoal. São exigidas que, além da pessoa reconhecida pela vítima, sejam apresentadas outras quatro pessoas com alguma semelhança. O Conamp cita como exemplo um roubo na madrugada, cometido por uma gangue, que exigiria 20 pessoas semelhantes para o reconhecimento.

Dificulta a interceptação telefônica

O atual ordenamento jurídico permite que a Polícia e o Ministério Público utilizem a interceptação (autorizada judicialmente) combinada com outros métodos regulares de obtenção de prova. Pela proposta atual, seriam necessários indícios suficientes de autoria para decretar essas medidas, inclusive com a previsão de oferecimento da denúncia. Com isso, dificilmente será autorizada a interceptação, que é realizada justamente para se buscar indícios suficientes de autoria.

Retirada de fase da pronúncia do Tribunal do Júri

Atualmente, existe uma etapa antes do julgamento de um crime doloso (com intenção) contra a vida, como homicídio, que se chama pronúncia. Nela, juiz, promotor e defesa analisam as provas, ouvem testemunhas e o magistrado decide se encaminha o caso para ser julgado pelo Tribunal do Júri (composto por jurados) ou não. A versão atual do relatório acaba com esta fase. Com isso, toda denúncia de crime doloso contra vida encaminhada pelo MP irá logo para julgamento pelo Tribunal do Júri, o que deverá implodir o sistema num país com altas taxas de homicídio.

Proibição de prova policial no Tribunal do Júri

O relatório proíbe que a coleta de provas feita no inquérito policial seja apreciada pelo Tribunal do Júri e também nega aos jurados a possibilidade de acessar os elementos de provas colhidos na fase investigativa, e que foram apreciados anteriormente pelo juiz ao aceitar a acusação.

Condenação por unanimidade

A absolvição ou condenação no Tribunal do Júri devem ser por unanimidade, bem como há um prazo para a votação. Se vencido o prazo e não houver decisão, o julgamento será dissolvido e o réu será solto. O modelo propõe ainda três fases de votação pelos jurados, em um sistema complexo e burocrático, que cria hierarquia entre jurados. Ao exigir a unanimidade, o MP entende que isso implica em quebrar o princípio do sigilo das votações. Se o réu for condenado, ele saberá que todos os jurados o condenaram.

Prática restaurativa nos crimes contra a vida

O relatório propõe acordos na esfera penal entre partes interessadas em crimes contra a vida, como homicídios. No entender do MP, a vida não pode ser considerado um valor negociável.

Reversão da soltura do réu em prisão preventiva

O relatório não traz instrumento necessário para reverter, imediatamente, a soltura do réu. Se a prisão for indevida, por exemplo, o acusado pode imediatamente revertê-la por meio de habeas corpus. Mas se o juiz ou tribunal soltar o acusado, não poderá o MP prontamente reverter essa decisão. Poderá sim recorrer, mas não buscar o que se chama de efeitos suspensivo/ativo, que permitem ao relator do tribunal reverter imediatamente a medida judicial. Com isso, quando o tribunal julgar o recurso e se mandar prendê-lo, o acusado já poderá estar muito longe.

Arquivamento do inquérito policial poderá ser pedido por delegado

O versão atual do projeto legitima o delegado de polícia a exercer pedido de revisão do arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação feitas pelo MP, impondo controle sobre a atividade do MP.

Um punir mais civilizatório, aponta defensor

Defensor público Álvaro Roberto Antanavicius Fernandes Representante da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (Adpergs) na Comissão Criminal da associação nacional da categoria, o defensor público Álvaro Roberto Antanavicius Fernandes apresenta outro ponto de vista sobre o novo CPP.

Um novo código é necessário?

Álvaro Roberto Antanavicius Fernandes - Sim, mais do que necessário. O atual foi editado em período autoritário (1941), inspirado na legislação então vigente na Itália de Mussolini, com princípios e regras que não apresentam conformidade com a Constituição Federal de 1988, de cunho formal e materialmente democrático. São, pois, inconstitucionais. Existem leis que buscaram adequá-lo à Constituição, mas isso quebrou a noção de sistema, produzindo-se a já tão falada "colcha de retalhos". Temos regras contraditórias, muitas vezes de difícil interpretação, o que é fator de diversas controvérsias entre os operadores e contribuem para a indesejável insegurança jurídica.

As mudanças cogitadas podem aumentar a impunidade?

Fernandes - Não sei se é possível falar em impunidade em um dos países que mais pune no mundo. De todo modo, se aceitarmos que ela, em certa medida, existe, há que se deixar claro que não pode ser imputada ao que dispõe o Código de Processo Penal e demais leis pertinentes, tampouco será aumentada ou diminuída a partir do que vier a ser instituído pelo novo diploma legal.

Fato é que temos hoje uma precária estrutura de investigação. Se investiga pouco e mal, com todo respeito às polícias. Estas fazem o que podem, considerando os recursos de que dispõem. E não poderia ser assim. A investigação boa é o princípio de tudo. Então, a resposta seria não. O que se pretende com o novo código é um punir mais civilizatório, com respeito às regras do devido processo penal constitucional, notadamente contraditório e ampla defesa. Trata-se do garantir para punir, e não o contrário. Não se trata de aumentar impunidade. Isto não vai ocorrer.

Há pontos que considera preocupantes no texto em análise?

Fernandes - Há diversos pontos que considero delicados. Cito, dentre vários outros, a pretendida inclusão/manutenção física do inquérito policial (tal como ocorre atualmente), o inadequado tratamento da teoria das nulidades (os atos inválidos não podem servir para qualquer fim - tal como ocorre atualmente), diversos dispositivos pertinentes ao júri popular (tais como a pretendida supressão do recurso da pronúncia e o número ímpar de jurados) e algumas questões pertinentes à teoria da prova. Mas há vários outros.

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