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Notícias | Rio Grande do Sul Coronavírus

Tratamento precoce com drogas sem comprovação divide opiniões de médicos e gestores

Ministério da Saúde autoriza uso de remédios sem estudos conclusivos no tratamento de casos leves da Covid-19, mas falta de confirmação sobre eficácia deixa gestores e médicos com receio. Já outra corrente se mobiliza pelo uso

Por Ermilo Drews
Publicado em: 04.07.2020 às 07:00 Última atualização: 04.07.2020 às 09:59

Hidroxicloroquina e combinação de outros fármacos no tratamento precoce divide médicos Foto: Reprodução
Apesar de permitido pelo Ministério da Saúde, o tratamento precoce dos sintomas da Covid-19 com medicamentos como cloroquina e seu derivado, sulfato de hidroxicloroquina, associados ao antibiótico azitromicina não emplacou Brasil afora porque não é consenso entre médicos, entidades que representam a categoria e gestores públicos. Enquanto uma parcela de gestores de saúde, hospitais e médicos demonstram receio em utilizar estes fármacos para enfrentar o novo coronavírus ainda na fase inicial, já que não há estudos conclusivos a respeito, outra costuma utilizar as redes sociais para defender a prática.

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Uma das porta-vozes desta corrente é a otorrinolaringologista Carine Petry, que morou até os 18 anos em Novo Hamburgo, onde os pais ainda vivem. Formada na Pontifícia Universidade Católica (PUC), ela atua há 15 anos em Brasília e teve a doença. Nas redes sociais, tem voz ativa sobre o tema. Com base em estudos de laboratório e experiências clínicas em cidades da Europa e até no Brasil, ela afirma que momento ideal para agir contra a Covid-19 é nos cinco primeiros dias, quando sintomas leves aparecem. "Ouviu-se muito tempo para procurar o serviço de saúde apenas quando se tem falta de ar e febre. Mas quando se tem qualquer patologia, o ideal é intervir precocemente. O tratamento precoce evita o colapso da saúde e perda de vidas", defende.

Assim como outros colegas, Carine é defensora da administração deste conjunto de medicamentos mesmo antes da testagem do paciente para a doença. "O resultado dos testes demora e o tempo é importante. Se a pessoa apresentar sintomas como dor de cabeça, congestão nasal, coriza, desconforto na garganta, tosse seca, dor nos olhos, dor no corpo, fraqueza, cansaço, tontura, aumento no número de evacuações, conjuntivite, manchas no corpo, alteração do paladar, perda do olfato, já deveria iniciar o tratamento mesmo sem o teste." Apesar desta convicção, a otorrinolaringologista admite que há uma divisão entre os colegas. "Há colegas que só se baseiam em estudo nível A e se recusam a utilizar medicação sem evidência científica total. Mas é um período sui generis. Temos que utilizar as melhores medidas possíveis para ajudar os pacientes, usando medicações que têm bom custo-benefício, não são caras, perfil bom de segurança, mas que precisam ser prescritas e o paciente deve ser acompanhado por um médico."

A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta que não há comprovação da eficácia dessas drogas contra o novo coronavírus e não recomenda o uso delas fora de pesquisas e testes controlados. No Brasil, o Ministério da Saúde incluiu a cloroquina e a hidroxicloroquina em protocolo de tratamento de pacientes com sintomas leves de Covid-19 desde 20 de maio. O documento traz a classificação dos sinais e sintomas da doença e a orientação para prescrição. A Pasta destaca que a prescrição de medicamentos permanece a critério do médico, sendo necessária também a vontade declarada do paciente. No dia 15 de junho, o Ministério inclusive ampliou as orientações que permitem o uso destas drogas por crianças e grávidas. A decisão ocorreu no mesmo dia que a FDA (Food and Drug Administration, em inglês), agência que atua como a Anvisa nos Estados Unidos, revogou a permissão de emergência concedida em 28 de março para o tratamento com estas drogas.

Conselho federal autoriza, mas com ressalvas

O Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou parecer no qual estabelece critérios e condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico confirmado de Covid-19. No documento, a autarquia reforçou seu entendimento de que não há evidências sólidas de que essas drogas tenham efeito confirmado na prevenção e tratamento dessa doença. Porém, diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, o CFM entende ser possível a prescrição desses medicamentos em três situações específicas: sintomas leves, importantes e paciente crítico.

No caso dos sintomas leves, deve ter sido descartadas outras viroses e precisa haver diagnóstico de Covid-19. Em todos os contextos, a prescrição cabe ao médico, em decisão compartilhada com o paciente.

De acordo com o CFM, apesar de existirem justificativas para o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas a antibióticos, baseadas em suas ações anti-inflamatórias e contra outros agentes infecciosos, seu baixo custo e os efeitos colaterais conhecidos, não há, até o momento, estudos clínicos de boa qualidade que comprovem sua eficácia em pacientes com Covid-19.

OMS e Sociedade Brasileira de Infectologia são contra uso em tratamento

A autorização do Ministério da Saúde não precisa ser seguida à risca por nenhum gestor de saúde nem por qualquer médico, que tem autonomia para decidir o tratamento para cada paciente. No entanto, hospitais conceituados no País, como o Albert Einstein, por exemplo, não recomendam a seus médicos a prescrição da cloroquina nem em modo off label, ou seja, fora das indicações homologadas para os fármacos pela agência reguladora no Brasil, a Anvisa.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), até o momento, os principais estudos clínicos não demonstram benefício do uso da cloroquina, nem da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes hospitalizados e efeitos colaterais foram relatados. Já seu uso em casos leves e moderados está sendo avaliado. A SBI endossa o posicionamento da OMS, da FDA e da Sociedade Americana de Infectologia (IDSA), que recomendam o uso destas drogas apenas em pesquisas clínicas, devido à falta de benefício comprovado e potencial de toxicidade.

Sobre a associação da hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina, a SBI afirma que não se comprovou o benefício clínico e que o uso combinado pode causar arritmia cardíaca, que pode levar à morte especialmente em pacientes com doenças cardíacas. A SBI observa ainda que a avaliação do uso de qualquer medicamento fora de sua indicação aprovada deve ser uma decisão individual do médico, analisando caso a caso e compartilhando os possíveis benefícios e riscos com o paciente.

Porto Feliz: a cidade do kit Covid-19

O caso da cidade de Porto Feliz, no interior de São Paulo, é usado por defensores do uso de cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento precoce de pacientes. Lá, esta prática começou no final de março. Um composto de medicamentos chegou a ser chamado de kit Covid-19 e viralizou em redes sociais.

Cloroquina e Hidroxicloroquina não têm eficácia comprovada contra a Covid Foto: Reprodução/TV Globo

"Esse protocolo se baseou no protocolo de Madri, Marselha e Bérgamo, e desde o fim de março temos feito o tratamento precoce de todos os pacientes com sintomas leves de Covid-19, com diagnóstico clínico e tomográfico. De todos pacientes tratados precocemente nenhum evoluiu para tubo, para respirador, para UTI e para óbito", argumenta o prefeito Antônio Cássio Habice Prado, que é médico. Até quem não teve a doença recebeu o kit. "Aqui estamos conseguindo controlar."

Resistência na saúde pública

Na região, os gestores de saúde adotam recomendações distintas. Em Canoas, a informação da prefeitura, por meio de sua assessoria de imprensa, é que hidroxicloroquina e outros medicamentos permitidos pelo Ministério da Saúde no tratamento precoce estão à disposição, caso o médico concorde em receitá-los. No entanto, em São Leopoldo e Novo Hamburgo a situação é diferente.

Em São Leopoldo, a recomendação para o uso de cloroquina se limita aos serviços de média complexidade, em nível hospitalar, não sendo fornecido na rede de Atenção Básica à Saúde e a pacientes com sintomas leves de Covid-19. “Para esses, nós seguimos a recomendação do TelessaúdeRS que é azitromicina, mais um analgésico e Tamiflu – para aqueles pacientes que são testados. Caso não haja a testagem, nós não disponibilizamos para o médico a receita desses medicamentos”, informa, em nota, a Secretaria de Saúde de São Leopoldo. Para o caso hospitalar, a recomendação é que o médico não receite, mas ele pode fazê-lo desde que assine um termo onde se comprometa com qualquer questão que possa vir acontecer com o paciente ligado ao fato de ele ter recomendado essa medicação. Também, o próprio paciente tem que assinar um termo de consentimento e estar cientes dos riscos.

A prefeita Fátima Daudt informa que o Município não adota tratamentos experimentais com hidroxicloroquina, entre outros, na saúde pública. “Para tornar isso uma política pública de uso coletivo precisa haver protocolos seguros ou podemos responder legalmente. Os prefeitos que permitem estes tratamentos estão fazendo por sua conta e risco”, argumenta. O infectologista do Hospital Municipal de Novo Hamburgo, Rafael Matiuzzi, observa que faltam estudos robustos sobre o assunto, mas reitera que cada médico tem autoridade para prescrever o tratamento que considerar mais adequado. “Porém, deve ser em consentimento com o paciente, que precisa ser esclarecido dos riscos.”

Pressão e violência

Entidades médicas como a Sociedade Brasileira da Medicina de Família e Comunidade, que congrega médicos que atuam na atenção básica à saúde, afirmam que a permissão do Ministério da Saúde para ampliar o uso de cloroquina, azitromicina e/ou hidroxicloroquina para casos leves da Covid-19 não passou por análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) e o uso dessas medicações não apresentou alteração do registro por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), procedimentos importantes para incorporação segura pelo Sistema Único de Saúde.

Segundo a entidade, diante da polarização e uso político intenso da medicina, existe um grave risco de pressão e violência contra profissionais de saúde para realizar procedimentos que vão contra a boa prática médica. Além disso, a maioria das unidades básicas de saúde no País não têm, por exemplo, eletrocardiógrafos para aferir se os pacientes podem usar a cloroquina, que apresenta a arritmia como um de seus principais efeitos colaterais.

Faltam estudos

De acordo com o CFM, apesar de existirem justificativas para o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas a antibióticos, baseadas em suas ações anti-inflamatórias e contra outros agentes infecciosos, seu baixo custo e os efeitos colaterais conhecidos, não há, até o momento, estudos clínicos de boa qualidade que comprovem sua eficácia em pacientes com Covid-19.

 

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