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Opinião Nostalgia

Orlando Drummond, o adeus da lenda

Uma homenagem a Orlando Drummond, que além de comediante marcou a tevê e cinema com sua voz

Por Gilson Cunha
Publicado em: 31.07.2021 às 03:00

Gilson Cunha Foto: Jornal NH

Detesto obituários. Eles são deprimentes. Nos lembram da ausência irreparável dos que partiram, e de nossa própria mortalidade. No entanto, como nerd “tarja preta”, nos dizeres de um amigo, eu não poderia me recusar a prestar tributo a nomes como Stan Lee, Leonard Nimoy, Sean Connery, e, agora, ao grande Orlando Drummond. Em O Último Samurai, o jovem imperador pergunta ao capitão Nathan Algren (Tom Cruise) como seu fiel samurai, Katsumoto (Ken Watanabe) morreu. Em resposta, ele ouve: “posso contar como ele viveu”. Então, isso é o que farei.

Orlando Drummond como o Seu Peru da Escolinha, um personagem popular interpretado por ele como ator. Drummond, entretanto, foi muito mais conhecido como dublador Foto: Divulgação Globo

Orlando Drummond Cardoso, mais que um radialista, ator, comediante e dublador, era uma instituição. Pouquíssimos na história da cultura popular brasileira conseguiram marcar a vida de tantos e de tão diferentes gerações. Esse carioca, nascido em 1919, começou a carreira no rádio em 1942, trabalhando com outra lenda, Paulo Gracindo, o futuro Odorico Paraguaçu da primeira versão de O Bem Amado. Gracindo reconheceu de imediato o potencial de sua voz e o ajudou a conseguir trabalho como dublador, carreira que dividiria com as telas, até 2015. No cinema, sua primeira aparição foi em O Rei do Movimento (1954). No entanto, foi como dublador que ele brilhou por mais tempo, tendo sido um dos grandes nomes da era de ouro da dublagem brasileira, e além, com atuações inesquecíveis.

Curiosamente, mesmo sendo dono de uma das vozes mais inconfundíveis da TV brasileira, Drummond só começou a atuar em novelas nos anos 90, com o Zaratustra, em Caça-talentos, entre 1996 e 1998. Mas foi com o Seu Peru, da Escolinha do Professor Raimundo, que ganhou notoriedade como humorista. Ele interpretou outros personagens no mesmo programa, adaptação para a TV do formato criado por Chico Anísio para o rádio, em 1952, nenhum, entretanto, tão popular quanto o hilário e debochado aluno de Raimundo Nonato.

O bom humor sempre foi uma marca de Drummond. Para quem acompanhou sua carreira, chega a ser difícil acreditar que um sujeito tão alegre, tão positivo e alto-astral, tenha celebrizado personagens ranzinzas como o marinheiro Popeye, ou o Comissário Odo, o chefe de segurança da estação espacial em Jornada Nas Estrelas – Deep Space 9. Mas era parte de seu carisma. Nem vou perder tempo tentando me lembrar de todos os personagens que ele já dublou e que marcaram minha juventude, como, tenho certeza, marcaram a juventude de muita gente, desde antes dos baby boomers até a geração atual. Basta dizer que meu falecido pai, mesmo sem saber, era fã dele. Ele adorava aquela voz rouca e pouco amigável de um western, cujo nome nunca lembrou, provavelmente um velho mineiro, daqueles de barba branca, usando um surrado macacão, um chapéu amassado, e botinas empoeiradas, e que dizia “vá embora, moço. Não tem nada aqui nessa cidade para você”. A mesma voz que ele identificou em Bud Spencer, momentos antes dele e de Terence Hill, cercados por um bando de marginais, entrarem numa briga em O Anjos Também Comem Feijão: “São apenas quinze!”, diz o barbudo, cheio de si.

A voz que encantou gerações era capaz de prodígios. Mesmo sendo poderosa, podia tanto passar doçura, como o Papai Smurf, personagem que dividiu com Sylvio Navas, quanto hostilidade, como o atrapalhado Gargamel, no desenho dos Smurfs, ou o cruel Vingador, no clássico Caverna do Dragão. Não é por acaso que, alguns anos atrás, a gravação de um comercial de uma marca de automóveis, que tinha como tema Caverna do Dragão, trouxe de volta, aos 99 anos, o talento de Drummond, em uma única e poderosa fala: “Tolos! Nunca escaparão!”.

Como muitos de minha geração, minhas primeiras referências em animação foram os desenhos exibidos na TV brasileira nos anos no início dos anos 70. São de Orlando Drummond algumas das vozes mais marcantes daquele período, com destaque para sua longa parceria como Mário Monjardim (o Supergalo, no show de George, o Rei da Floresta). Eu aprendi o que é humor inteligente com esses dois. Até hoje choro de rir com o clássico Supergalo, desenho de Jay Ward, no qual Monjardim dublava Henrique Dondoco III, o protagonista, um raquítico galo playboy almofadinha que, ao provar do super suco, preparado pelo leão Fred (Drummond, em uma de suas mais lendárias atuações. Vai pleonasmo mesmo. Ele merece), se transformava no poderoso galináceo, campeão dos fracos e oprimidos Fred era seu assistente, mordomo, estagiário e faz tudo, encarregado de preparar a beberagem que dava superpoderes a seu patrão e, com frequência, de cumprir as mais ingratas missões em nome da verdade, da justiça e de uma boa piada. A dupla Drummond-Monjardim se reencontraria nos desenhos de Scooby Doo, com Monjardim vivendo Norville Billy “Salsicha” Rogers (Shaggy no original) e Drummond vivendo seu inseparável companheiro canino.

Scooby-Doo Foto: Reprodução
Não há dúvida alguma de que, em termos de voz, tanto Scooby quanto o leão Fred, ou mesmo o atrapalhado Hong Kong Phooey, compartilham de um registro mais grave. Contudo, as diferenças são claras. Scooby é assustado e dono de certa malandragem (principalmente quando acha algo saboroso para comer). Fred é, decididamente, um cara indignado como as missões que recebe do patrão. E Hong Kong Phoey é um cachorro ingênuo, que realmente acredita ser capaz de prender os vilões, quando, na verdade, tudo é feito por seu ajudante, o gato China. Todas essas nuances da voz de Drummond transparecem nessas atuações.

Sargento Garcia Foto: Reprodução
Drummond também teve personagens marcantes em filmes e séries live action, como o Sargento Garcia, em Zorro (1957-1959). Em 1970, o ator Henry Calvin, que fazia o atrapalhado sargento da guarnição de Los Angeles, na popular série da Disney, estava no Rio, a passeio. Ele viu alguns episódios dublados na TV e pediu para conhecer seu dublador. Na ocasião, Calvin afirmou: “Você é tão pequeno e tem uma voz tão grande. Eu sou tão grande e tenho uma voz tão pequena”. Quando a série foi colorizada e ganhou nova uma dublagem, nos anos 80, Drummond fez questão de redublar suas falas. O resultado é maravilhoso.

Em meados dos anos 80, ele dublaria Gordon Shumway, mais conhecido como ALF, na série Alf, O ETeimoso. Drummond vivia um naufrago alienígena do planeta Melmac, que convive secretamente (ma non tropo) com uma família terrestre, enquanto espera resgate, tenta enganar a força aérea americana, ocasionalmente, quase transformando o gato da casa numa iguaria muito apreciada em seu planeta.

Ainda nos anos 80, ele brilhou como Max (Lionel Stander), o fiel mordomo do senhor e da senhora Hart (Robert Wagner e Stephanie Powers) em Casal 20, série de aventuras exibida inicialmente pela Globo. Ao longo de sua carreira, Drummond emprestou sua voz a atores como Max Von Sidow (padre Merrin, em O Exorcista), Robert Loggia (General Grey em Independence Day), Pat Hingle (Comissário Gordon, em Batman e Batman, O Retorno), e muitos outros.

Vingador Foto: Reprodução
Scooby-Doo foi seu papel mais longevo como dublador, tanto em animações quanto em live action. Foram 41 anos dublando o mesmo personagem em diferentes séries animadas, longas de animação e dois live-actions para o cinema, o que lhe valeu um recorde no Guiness, por ocasião do 35? aniversário de sua escalação como Scooby. Sobre seu personagem de animação mais famoso, ele declarou ter usado a imitação do latido de um cão grande para espantar um ladrão que havia invadido seu quintal. O truque funcionou tão bem que, quando lhe foi oferecido o papel daquele que viria a ser o dog alemão mais amado do mundo, ele não teve dúvida. Seria aquele tom grave e profundo que usaria. A ironia é que, no fim das contas, Scooby-Doo era o tipo de cachorro que fugiria ao ver um ladrão...

No ano passado, a longa jornada de Monjardim e Drummond como Salsicha e Scooby terminou. Os dubladores originais tiveram a satisfação de escolher seus sucessores, Guilherme Briggs e Fernando Mendonça, Scooby e Salsicha, respectivamente. Nada mais justo. No início de sua carreira, o jovem Briggs foi convidado pelo mestre Drummond a trabalhar no estúdio de dublagem Herbert Richers. Com quase trinta anos de carreira, tornou-se um dos mais aclamados dubladores brasileiros da atualidade, com trabalhos que incluem O Homem de Aço (Kal El/Clark Kent) e Star Trek – Além da Escuridão (Spock). O legado de Orlando Drummond e de Scooby-Doo está em boas mãos.
A nós, que o admiramos por décadas, fica a gratidão. Muito obrigado por sua arte, Mestre! Vá em paz e com a certeza de que teve uma vida longa e próspera. Você viverá para sempre em nossos corações.

 


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