Publicidade
Notícias | Região CULTURA

Aos 94 anos, proprietário de livraria histórica de Sapiranga encerra as atividades do estabelecimento

Arti Hugentobler era provavelmente o livreiro mais antigo que ainda atuava no Rio Grande do Sul. Ele começou a vender livros em 1943

Por Matheus Chaparini
Publicado em: 12.11.2022 às 03:00 Última atualização: 13.11.2022 às 10:51

Um pequeno templo dedicado à literatura dos mais variados gostos e estilos e, principalmente, à história do município de Sapiranga fecha suas portas após mais de 60 anos. Neste sábado (12), a Livraria Presencial abriu as portas ao público pela última vez, encerrando o ciclo de "uma perseverante presença cultural", como indica o slogan. O estabelecimento, na rua General José Antônio Flores da Cunha, no Centro, pertence a Arti Hugentobler. Aos 94 anos, ele era provavelmente o livreiro mais antigo em atividade no RS.

Despedida da Livraria Presencial, do Arti Hugentobler, em Sapiranga
Despedida da Livraria Presencial, do Arti Hugentobler, em Sapiranga Foto: Matheus Chaparini/GES-Especial

A livraria foi criada em 1956, como Casa Globo, na Rua João Correa. Em 1967, mudou para a esquina com a 15 de Novembro. Em 1991, o negócio passou ao endereço atual, também sua casa, e virou Livraria Presencial. Mas bem antes de ter um CNPJ, Arti já se dedicava aos livros. Começou a vender em 1943.

Foi sem grande alarde que Arti decidiu encerrar as atividades. Quando a informação chegou à redação do Grupo Sinos e virou pauta, ainda teve certa resistência em falar. Por fim, topou receber a reportagem. Mesmo sem anunciar o término das atividades do negócio, a informação circulou pela cidade e diversos clientes apareceram para comprar um último exemplar.

"A reação do público é surpreendente. Eu compreendo, porque minha amizade é muito grande, não só como livreiro. A reação está começando agora e eu fico emocionado. Tem gente até que…" Arti leva as mãos ao rosto, fazendo sinal que indica que os clientes choram na despedida. Neste momento, seus olhos ficam marejados.


Arti nasceu no interior de Taquara, na Picada Francesa - que deveria se chamar Franco-suíça, reivindica o livreiro. Os bisavós vieram da Suíça, fronteira com a França. Como os primeiros habitantes falavam francês em meio à maioria do alemão, o local ficou conhecido como francês.

A paixão de Arti pelos livros vem da infância. Sempre teve fascínio pelos dicionários. Na prateleira ao lado da cadeira onde senta na livraria, há mais de 30 volumes de dicionários. Filho único, perdeu o pai aos seis anos. Muito estudioso, não teve oportunidade de frequentar faculdade, e tornou-se autodidata.

Despedida da Livraria Presencial, do Arti Hugentobler, em Sapiranga.
Despedida da Livraria Presencial, do Arti Hugentobler, em Sapiranga. Foto: Matheus Chaparini / GES-Especial

Ao longo de quase oitenta anos comercializando conhecimento impresso em papel, Arti fez parte da formação de muitos. "Pessoas de todas as áreas do conhecimento já compraram livros aqui, juiz de direito, médico, advogado, engenheiro, alguns já faleceram, e tem pelo Brasil afora", conta.

Entre os motivos para o encerramento, o principal é a insegurança. Arti ainda elabora o fechamento da livraria. "Ainda não consigo explicar", diz. Perguntado se pretende se aposentar, responde com um provérbio árabe: trabalho como se fosse viver eternamente e vivo como se fosse morrer amanhã."

Família possui projetos e garante que não vai se afastar dos livros

O que veio fazer em Sapiranga um trio de cossacos russos um pouco antes do início da Segunda Guerra? Quem foram os Mucker, do Morro Ferrabraz? Respostas para todas essas perguntas, Arti tem de pronto, na ponta da língua. É uma espécie de enciclopédia viva da cidade, em função do que viu e viveu desde antes de Sapiranga ser independente.

Inclusive, participou do processo de emancipação do município e foi vereador eleito pelo MDB no fim da década de 1960, quando a função ainda era voluntária.

A propósito, sobre os russos: "Os cossacos são exímios cavaleiros e fizeram uma apresentação lá na rua Coronel Genuíno Sampaio, onde era o campo do Sapiranga Futebol Clube", conta Arti. Atualmente, Hugentobler conta com a parceria da filha Luciana na gestão da Presencial. Filha mais velha, ela nasceu e cresceu em meio aos livros.

"Conheço o livro desde que eu nasci, porque o pai me contava histórias e me levava junto quando ia buscar livros em Porto Alegre. A gente ia de ônibus, porque não tínhamos carro. Eu adorava ficar nas distribuidoras e livrarias. Ele ia nos outros lugares e me deixava lá. Eu perdia a noção do tempo de tanto que gostava e ainda gosto", conta.

Luciana garante que o fechamento da livraria não é o fim da relação da família com os livros. "Chegou o final de um ciclo. Então vamos iniciar outro ciclo, temos outros projetos. Não vamos nos afastar dos livros."

Arti e os filhos
Arti e os filhos Foto: Matheus Chaparini / GES-Especial

A família seguirá com a venda dos livros on-line e por WhatsApp, novidades criadas em função das restrições da pandemia. Eles têm ainda outros projetos em andamento. Um deles, em estágio inicial, é um livro escrito por Arti sobre a história de Sapiranga.

Ao fim da entrevista, este repórter aproveitou para adquirir um livro - afinal, estamos falando de uma histórica livraria, além de encomendas feitas pela redação, saudosa da Presencial. Videiras de Cristal, de Luiz Antônio Assis Brasil, foi o título escolhido. O romance tem como pano de fundo a história dos Mucker. Arti conta, orgulhoso, que o autor começou a escrever a obra dentro da Presencial. Na última página, dedicada aos agradecimentos, Assis Brasil cita Arti Hugentobler, seu "cicerone no Ferrabrás".

Despedida da Livraria Presencial, do Arti Hugentobler, em Sapiranga.
Despedida da Livraria Presencial, do Arti Hugentobler, em Sapiranga. Foto: Matheus Chaparini / GES-Especial

Ao fim da conversa, o quase centenário livreiro se despede da equipe, ainda um pouco resistente ao protagonismo de uma capa de jornal. "Eu não tenho preocupação em aparecer, só não quero desaparecer."

Uma homenagem ao 'Google de Sapiranga'

Na manhã dessa sexta-feira (11), quando a reportagem esteve na Presencial, dois clientes antigos entregavam ao livreiro um pergaminho emoldurado com uma homenagem pelos serviços prestados a Sapiranga.

"É um educador, um homem que consegue agregar cultura. Viu essa cidade nascer e participou muito para o seu crescimento. É um homem que representa muito essa cidade", afirma o advogado Ildo Szinvelski.

Eugênio Hack (esquerda) e Ildo Szivelski (direita)
Eugênio Hack (esquerda) e Ildo Szivelski (direita) Foto: Matheus Chaparini / GES-Especial

O representante comercial Eugênio Hack frequenta a livraria há quase 50 anos. Aos 16, já integrava o Clube do Livro, quando o negócio ainda se chamava Casa Globo. Para Eugênio, a Presencial é um marco histórico da cidade e seu fechamento é uma lástima para Sapiranga.

"O Seu Arti é a história viva da cidade. Mexe com livros dele treze anos de idade, a história da vida dele é livro. É um cara que agregou muito, Sapiranga deve muito a ele. Creio que seja o livreiro mais antigo atuante no Rio Grande do Sul, talvez no Brasil. O que fizemos aqui é um gesto muito pequeno, porque a história não cabe em um pergaminho. Ele é um livro aberto da história da cidade"

Eugênio e Ildo destacam o nível de conhecimento de Arti em relação aos mais diversos aspectos da história do município, desde antes da emancipação, da qual participou.

"A gente brinca que ele é o Google de Sapiranga. O que você precisar saber, dá um Seu Arti e vai sair com a resposta"

Bem humorado, diante da homenagem, Arti lança mão da modéstia: "Os amigos sempre são mais gentis, exageram um pouquinho", brinca.

Gostou desta matéria? Compartilhe!
Encontrou erro? Avise a redação.
Publicidade
Matérias relacionadas
Botão de Assistente virtual