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Do sapato à batuta: conheça o maestro de Novo Hamburgo que hoje rege orquestras pelo mundo

Criado no bairro Rondônia, Linus Lerner conduz as orquestras de Gramado, Rio Grande do Norte e Sul do Arizona

Por João Carlos Ávila
Publicado em: 22.01.2022 às 07:00

As pequenas mãos que aos 7 anos desfilavam suas habilidades na bancada de um atelier calçadista, fazendo aquilo que se tornou conhecido como "enfiadinho" - ato de trançar o couro -, tornaram-se muito mais do que especialistas em sapatos. Na essência daquele menino de Novo Hamburgo, filho de pais sapateiros, criado no bairro Rondônia, estava a música. Hoje, a batuta - pequeno bastão de madeira utilizado por maestros na regência de corais ou orquestras - é a principal ferramenta de trabalho de Linus Lerner, 53 anos.

Linus Lerner
A vida não foi fácil. Além do trabalho infantil com calçados, o garoto precisou vender frutas nas esquinas e limpar jardins em imóveis de alto padrão para ajudar no sustento da família. Eram em cinco: os pais, Leopoldo Canisius Lerner e Sirlei Lerner, e os irmãos Célio Luis e Eliane Beatriz. Mas a música não lhe saía da cabeça.

Aos 11 anos, no dia da Primeira Eucaristia, Linus cantou na Igreja Católica do bairro onde morava. Foi sua primeira apresentação em público. Fez solo, tocou saltério - instrumento de cordas - e chegou à conclusão que era aquilo que iria fazer.

Hoje, pode dizer que chegou onde gostaria: é diretor artístico e principal maestro da Orquestra Sinfônica de Gramado; diretor artístico e maestro titular da Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte e também da Orquestra do Sul do Arizona, nos Estados Unidos.

O maestro fala da música com brilho nos olhos e a classifica como "alimento da alma". "Quero levar música boa, pode ser popular bem feita, mas de qualidade, para tocar a alma das pessoas." Linus entende que muita gente não está preparada para assistir a espetáculos que exigem concentração e acabam se preocupando mais em fotografar do que em curtir o momento.

Sobre a música produzida no Brasil, o maestro coloca a MPB entre as melhores do mundo.

Entrevista

Como nasce um maestro?

Linus Lerner - Um maestro nasce do saber fazer música, cantar e tocar algum instrumento bem feito, participar de grupos e ver como funciona. Vai nascendo a liderança, a necessidade e a vontade de querer fazer música com a sua interpretação. Não existe uma fórmula. É uma evolução.

Como foi com você?

Linus - Eu tinha grupos de violões, grupos vocais e acabava liderando. Quando vê, você está regendo. Na Camerata de Violões eu tocava, mas chegou a um ponto que ela cresceu tanto que, ou eu regia, ou eu tocava. Deixei de tocar para reger.

O maestro é gestual e o músico é visão...

Linus - A linguagem é totalmente não verbal. Quanto mais claro for o gestual do maestro, melhor os músicos tocam. Quanto menos o maestro fala, melhor ele é para os músicos. Músico não quer ouvir o blá blá blá. Ele quer ver o maestro colocar esta magia.

Algum método pode ser aplicado neste ensinamento?

Linus - Já coloquei meus alunos na piscina para mexer os braços na água e sentir esta resistência. Com esta resistência que se faz música, movendo coisas que a gente não vê.

Há diferença entre as performances de maestros?

Linus - Se você colocar 90 maestros regendo a mesma orquestra, cada um toca a mesma peça de maneira totalmente diferente. Esta é a magia. Se eu pegar a batuta e apertar e o braço enrijecer, já muda o som da orquestra.

Como a música reflete no nosso dia a dia?

Linus - Nós emitimos luz, o nosso cérebro é uma frequência, assim como nosso corpo vibra. Se você ouvir uma música que só fala palavrões, como você vai estar no fim do dia?

O que acontece que lembramos das letras de músicas de décadas atrás e não lembra do que foi sucesso há alguns meses?

Linus - Porque não existe apelação à nossa alma. Ela não toca mais a nossa alma. A gente canta até cansar porque é repetida, somos bombardeados.

A música orquestrada tem espaço no gosto das pessoas?

Linus - A orquestra do Rio Grande do Norte lança um espetáculo e tem 9 mil pessoas disputando 1,5 mil ingressos. O potiguar gosta de música e sabe apreciar. Quando se dá oportunidade, o povo gosta. A juventude que vejo lá, não vejo em outros lugares do Brasil. Se você botar na rádio ou no ônibus a música clássica, as pessoas vão gostar.

Por que você diz que a música é o alimento da alma?

Linus - A música foi sempre um instrumento de recuperação. Depois da guerra foi a música que uniu as nações. Depois de tantas tragédias, é a música que une as pessoas, porque ela alimenta a alma. Estas músicas comerciais vão alimentar o quê?

Por onde passa a melhora da qualidade da música brasileira?

Linus - A Música Popular Brasileira (MPB) é a melhor música do mundo. Não sou eu que estou dizendo isso, mas é a minha opinião, também. Por causa do sincretismo. É uma mistura de tudo e a gente buscou o melhor. Um Tom Jobim estudou Chopin como um louco. A Bossa Nova que ele compôs tem partes de compositores clássicos.

E tem como recuperar esta música e colocá-la na alma do brasileiro?

Linus - Você acabou de dizer uma coisa: as pessoas estão ouvindo música dos anos 1980 porque não têm coisa que preste hoje. Claro que sempre tem alguma coisa. O Caetano está lá fazendo música, Gal, porque as pessoas querem ouvir música de qualidade. E quem diria que eu iria dizer isso hoje: eu achava o Roberto Carlos o suprassumo do brega e hoje é o rei, porque aquele brega nosso não se compara ao de hoje. A música do Roberto Carlos é um veludo no meu ouvido comparado ao que a gente ouve hoje.

Na prática, o que fazer?

Linus - Temos que voltar às nossas raízes. A Bossa Nova tem uma estrutura. A melodia, a harmonia e o ritmo têm que estar no mesmo nível. Por isso a Bossa Nova é fenomenal. E a Garota de Ipanema é a segunda música mais gravada do mundo. Foi criada em função do bombardeio que se ouvia de música europeia da época.

Você fala com tanta satisfação da música brasileira...

Linus - É muito linda a nossa música. Eu nasci músico popular. Eu tocava em bares em Novo Hamburgo, com 17, 18 anos. Toquei nas ruas de São Leopoldo. Veja bem: a música clássica nasceu da música popular. Na época de Beethoven, Bach, eles pegaram as músicas das danças de salão e colocaram nas orquestras. O Villa Lobos fez o quê? Coletou as músicas dos índios, os sons, e colocou na música. O que fizeram os nacionalistas? Voltaram ao que era o folclore deles. Antonín Dvorak, por exemplo, com a sinfonia do Novo Mundo, a número 9. Que sinfonia mais linda é aquela.

O Brasil tem o apoio que precisa para a música?

Linus - Nosso governo está querendo acabar com a cultura. Lembre-se que a cultura é a única salvação do mundo, mas os governos de todo o mundo eliminam o quanto podem porque as pessoas ficam manipuláveis.

Até que ponto a Internet ajuda na popularização da música?

Linus - Ajuda, mas ao mesmo tempo, ajuda só aquelas que eles querem que você ouça. Somos bombardeados e lavados cerebralmente para escutar o que querem que você escute. Mas nada é melhor do que pegar aqueles bolachões de disco. Quem faz isso hoje? Eu ia com amigos para a montanha ouvir sinfonia alpina, Beethoven. As pessoas vão aos concertos e ficam gravando, em vez de aproveitar o momento. Não vivem o presente.

Anos atrás, se via orquestras apenas nos Concertos para a Juventude, da TV Cultura. Hoje, tem dupla sertaneja se apresentando com orquestra...

Linus - A orquestra pode tocar qualquer coisa. Fizemos um concerto em Natal do Elino Julião, um forró brega. Mas a gente arranjou para a orquestra e ficou música de alto nível.

E as pessoas gostaram?

Linus - É um dos concertos que as pessoas mais veem. A orquestra tem uma sonoridade que você nunca vai conseguir com uma banda.

E para a gente ver o Linus em ação?

Linus - Aqui em Gramado. Sou o regente da Orquestra Sinfônica de Gramado.

E em Novo Hamburgo?

Linus - É só me convidar.

Um sonho?

Linus - Reger no Carnegie Hall foi um sonho realizado. O sonho de gravar com uma orquestra como a Royal Filarmônica de Londres, o primeiro brasileiro a fazer isso. Mas o meu sonho constante é continuar fazendo música.

Algum projeto?

Linus - Quero escrever um livro sobre “A importância da consonância” ou “O poder da consonância”. Quando falo da consonância, não falo só da consonância musical. Falo da consonância de alma, de vibrações. Quando eu faço um concerto, faço de tudo para que música se sobressaia, não eu, a orquestra ou os músicos. É preciso tocar nos corações.

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