Publicidade
Botão de Assistente virtual

População negra do Vale do Sinos cobra reconhecimento por protagonismo na construção da região

Apagada com o passar do tempo, história dos negros no Rio Grande do Sul é anterior à chegada dos primeiros migrantes alemães ao Estado

Reportagem: Eduardo Amaral

Em 25 de julho de 1824, chegaram à cidade de São Leopoldo as primeiras famílias alemãs, dando início ao processo migratório no Rio Grande do Sul. Até hoje, essa é considerada a data oficial de fundação do município. Entretanto, muito antes do desembarque dos alemães no Vale do Sinos, outros grupos já ocupavam a região, ainda que tenham sido reduzidos à condição de coadjuvante na memória coletiva. Eram congos, cassanges, jejes, monjolos, rebolos, entre tantas outras etnias de povos africanos.

Sincretismo religioso foi a forma encontrada pelos escravizados para manter a fé
Sincretismo religioso foi a forma encontrada pelos escravizados para manter a fé Foto: Eduardo Amaral/GES Especial
A preferência pela saga dos imigrantes europeus fez com que a história dos negros escravizados fosse aniquilada, a ponto de se tornar praticamente desconhecida. Esse silenciamento nos livros de história é parte de um processo de invisibilização da população negra e de uma política higienista apoiada pelo império, conforme explica o historiador Marcus Vinicius de Freitas Rosa. No livro Além da Invisibilidade, ele lembra que a crença adotada pelo governo da época era a de que alemães e italianos seriam pertencentes a uma raça superior.

Foi esse mesmo governo que mandou, em 1788 – 36 anos antes da chegada dos imigrantes –, um grupo de 21 casais de escravizados para São Leopoldo. Eles foram deslocados para a criação da Real Feitoria do Linho Cânhamo, que produziria matéria prima para velas e cordéis de navios. Anos depois, um novo grupo chegaria a Taquara.

Mesmo com a assinatura da Lei Áurea em 1888, o processo de embranquecimento da história foi levado adiante, e o papel dos negros na construção do Estado, apagado. Mestre em História pela Unisinos, Eliege Moura Alves atribui esse apagamento à forma como os historiadores da época escolheram contar os eventos passados. "Sempre buscaram colocar essa ideia de que o progresso colonial era devido justamente ao trabalho do imigrante branco, europeu, de origem germânica. Essa pecha, de coisas que não haviam dado certo, era colocada para a população trabalhadora de origem africana", observa a pesquisadora, que atua como voluntária na pesquisa "Registros da Presença Negra no Arquivo Histórico do RS".

O impacto dessa invisibilização dos negros na região pode ser percebido nos dias de hoje, conforme elucida a professora do curso de História da Universidade Feevale Magna Magalhães. "Reflete uma forma de pensar que construiu o imaginário, que funciona até hoje, do progresso ordeiro do imigrante como a figura mais enaltecida e que todo o desenvolvimento regional está ligado a ele."

Adriângela Cabral e Nadir de Jesus Foto: Eduardo Amaral/GES Especial
Acesso restrito a espaços de poder

Secretária de Direitos Humanos em São Leopoldo, Nadir de Jesus foi a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Câmara de Vereadores da cidade. "Para existir, nós precisamos ocupar espaços. Nada do que está acontecendo é um favor de outra etnia. Eu não sou vereadora por acaso. Hoje eu sou secretária de Direitos Humanos e eu não estou aqui por favor de ninguém."

O acesso a espaços de poder pela população negra, contudo, ainda é exceção, e as dificuldades estão diretamente relacionadas ao contexto histórico, permeado por três séculos de escravidão.

"Quando tu é tirado de um País, sequestrado, arrastado, escravizado para um outro continente, tu não vem de livre e espontânea vontade tentar uma vida melhor, ao contrário do imigrante", diferencia Nadir.

Ao olhar para o passado, é possível perceber uma série de restrições à presença negra no País. Um dos casos que costuma aparecer em diferentes narrativas diz respeito à proibição da entrada de negros em clubes, entre outras leis que visavam a impedir que essa comunidade pudesse exercer sua cultura e manter suas tradições políticas e religiosas. 

"Precisamos entender que esse contexto nos trouxe até aqui, nos prejudicou e hoje nós temos um problema", frisa a chefe do Departamento de Igualdade Racial de São Leopoldo, Adriângela Cabral.

Sincretismo religioso foi estratégia para manter a fé Foto: Eduardo Amaral/GES Especial
Resistência coletiva

Há quatro anos, na cidade de Taquara, nascia a Associação Regional e Cultural Afrodescendentes (Arcat), instituição que busca justamente resgatar a história dos negros em uma cidade que se apresenta ao mundo como branca.

"A cultura alemã e portuguesa que predomina, só que a gente descobriu que existe uma grande população negra aqui em Taquara. Então, por que não criar uma associação?", questiona a vendedora Priscila dos Santos Silva, 33, uma das fundadoras da Arcat.

De acordo com o historiador Maicon Diego Rodrigues, chefe de divisão do arquivo do Museu Histórico Adelmo Trott, documentos indicam a presença de negros no município desde 1814 – ano que marca a chegada de Antônio Borges de Almeida Leães ao Vale do Paranhana. Agraciado com uma sesmaria (que compreendia os atuais territórios de Taquara, de Igrejinha e de Três Coroas), ele levou escravizados para trabalharem em suas terras.


Os primeiros migrantes alemães só desembarcaram em Taquara em 1845 – 31 anos depois da população negra, levada à força pelos portugueses. Mesmo assim, a história do povo negro foi sendo esquecida, e a revisão do passado, reclamada pela comunidade.

A criação de espaços próprios de encontro para fortalecimento de populações marginalizadas não é uma novidade, mas um costume antigo. Foi o caso da Sociedade Cruzeiro do Sul, a Cruzeirinho, fundada em 1922, em Novo Hamburgo, inicialmente como um clube de futebol.

"Naquela época, houve essa situação de o povo negro não ter essa abertura na sociedade. Então, resolveram criar o clube e, desde ali, foi se mantendo. Resistiu porque sempre teve alguém que foi fazendo as coisas acontecerem", lembra o atual presidente da instituição, José Odilto Anselmo, 63 anos.

Pai Marcello D'Ògún Oníré ainda enfrenta preconceitos por professar a fé Foto: Eduardo Amaral/GES Especial
Religiosidade proibida e estigmatizada

Quando chegaram ao Brasil, negros trazidos de países africanos eram proibidos de exercer sua religiosidade. Batizados compulsoriamente, precisavam buscar estratégias para escapar da perseguição católica. Para isso, tiveram de lançar mão de certa "malandragem", como classifica Pai Marcello D'Ògún Oníré, de São Leopoldo. 

Os devotos das religiões de matriz africana estabeleceram uma correlação de suas divindades com os santos católicos. Usavam grutas para esconder essas imagens e fazer os próprios cultos. "Teve que haver essa 'malandragem' linda e divina, porque foi a maneira de se manter viva as tradições de matriz africana", explica o babalorixá, ao falar sobre sincretismo – fusão de cultos ou doutrinas religiosas.

Com o passar dos séculos, as religiões africanas seguiram sendo praticadas, e seus ritos e dogmas perpetuam-se de forma oral. Natural de Taquara, mas moradora de Novo Hamburgo desde 1974, Mãe Mari Sandra de Ogum Onira Kamiola Dei Fabey é um dos exemplos de quem trouxe a religiosidade de berço.

“A minha bisavó era escrava e com ela eu aprendi a Umbanda. Continuei levando o histórico e o legado da minha família”, conta Mãe Mari.

Cultivar as tradições de matriz africana é também uma forma de acolhimento, resistência e combate ao preconceito. "Hoje, nós não nos sentimos ainda seguros", destaca Adriângela Cabral, lembrando de ataques recentes a terreiros e a praticantes.

Pai Marcello mostra-se preocupado com o cenário de intolerância religiosa no País. "Eu vejo em níveis crescentes. Infelizmente, terreiros são atacados, incendiados", comenta. Mesmo tendo se tornado conhecido na cidade de São Leopoldo, ele mesmo ainda passa por situações de preconceito quando sai à rua com vestes que identificam sua fé. "Eu estava no caixa e ninguém veio atrás de mim, eles foram para outros caixas com filas imensas", conta.

Vanessa resolveu fazer acessórios, que viraram seu próprio negócio Foto: Eduardo Amaral/GES Especial
Reparação histórica

Forçada a deixar o país de origem e apagada da história oficial das cidades que ajudou a construir, a população negra vive de conjugar o verbo resistir. Porém, a cada dia mais, esse grupo luta para alcançar uma existência mais leve, que dispense um constante estado de alerta aos preconceitos. Para isso, é fundamental que os brancos assumam seu papel na luta contra o racismo e a discriminação.

"Você que não é negro observe os espaços em que você está e onde estão esses negros. Sinta-se incomodado com a não presença de negros nestes espaços”, alerta a secretária de Direitos Humanos de São Leopoldo, Nadir de Jesus.

Pensando em ocupar espaços, negros moradores de uma região que se diz branca reivindicam protagonismo e querem que a história seja contada levando em conta o seu papel. Em Novo Hamburgo, a Feira Afro-Hamburguense leva às ruas pessoas que descobriram na ancestralidade uma forma de sustento. Ali são vendidos turbantes, colares e outros objetos que representam a cultura negra.

Vanessa Dienstmann, 36 anos, é uma das empreendedoras que expõe seus produtos na feira. Nascida em Campo Bom, mas criada em Novo Hamburgo, notou a ausência de peças com as quais se identificasse. "Comecei a sentir falta de alguns produtos que eu utilizava, como um turbante. Eu fui costurar e fui fazendo meus próprios acessórios", recorda.

Com formação em marketing e especializações em marketing digital, gestão em vendas e gestão comercial, Vanessa decidiu colocar o conhecimento em prática e virar dona do próprio negócio. A ideia? Vender os turbantes que não encontrava no comércio da cidade. "A gente vai agregando um ao outro, vai dando oportunidades a outros empreendedores... É mais ou menos um exemplo que eu queria ser para outras pessoas", comenta, ao falar sobre a feira.

"Quando eu era novinha eu não tinha nenhum exemplo, não tinha empreendedora negra. A não ser artista e atleta, a gente não tem nenhum espelho", analisa, mirando um futuro em que a presença negra seja naturalizada e respeitada em qualquer espaço da sociedade.

Gostou desta matéria? Compartilhe!
Publicidade
Matérias especiais
MERCADO

Ter o apoio de quem entende é a melhor receita para encontrar o imóvel desejado

Região
Turismo

Um domingo especial para conhecer os Caminhos de Lomba Grande

Região
PRODUTOS DE MARCA E PREÇO BAIXO

Rota de outlets é opção de compras no caminho para a Serra gaúcha

Região
ESPECIAL

De situações de rotina a serviços de urgência: a importância do porteiro em condomínios

Região